domingo, 19 de dezembro de 2004

LIre sur internet

http://www.site-magister.com/livrint.htm
Ótimo site. Oferece links para homepages de um grande número de escritores, poetas e filósofos franceses. Links para bibliotecas internacionais e otras cositas más.

Cyberjúlia*


Júlia já não me é. Desse lado da máquina, observo-a enquanto se afasta. O seu olhar, seu sorriso, atravessam a tela fria. Como responder a pergunta: deseja salvar a figura antes de fechar a janela?
Todos os dias o mesmo medo agarrando-me pelo pescoço, esse iceberg nascendo nas vísceras, congelando meus membros. Agora, nesse exato momento, Júlia não está mais presente, dobrou a esquina do ciberespaço escapando ao meu desejo, instaurando em minha vida o tempo da espera. Tudo nela é suposição e linguagem. Júlia, substantivo abstrato, existe para além de mim mesmo, indefinidamente!
Preciso do socorro imediato de uma bebida qualquer. O seu olhar, aprisionado na memória do HD, me revela as milhares de mulheres que ela me quer ser. Será aquela que eu escolher. Semana passada veio na pele de Açucena, açucena-do-mato, esclareceu. As palavras, as palavras são meus braços, minha boca, meu pênis ereto. Só tenho palavras para acariciá-la, com palavras eu a penetro e a faço minha.
Há uma mulher de carne, ossos e sangue, ao alcance de minhas mãos. Basta que eu escolha a opção: desligar o computador; basta que eu abra a porta do meu quarto, basta que... Sim. Eu posso acordá-la. Posso transar com ela, chamando-a “Júlia” , silenciosamente. Posso, mas não quero.
A bebida me permite relaxar, embora desate o fluxo da memória. Há oito meses estamos juntos. Júlia, a máquina e eu. Ela não acredita, mas, quando a conheci, era a primeira vez que eu entrava num “chat” , uma sala de conversas online. Bem que a minha avó dizia que a curiosidade matou o gato.
Eu usei o nick “professor” : é o que sou e desde a primeira vez foi a imagem do que suponho o meu eu verdadeiro que projetei para ela; justamente o nick atraiu-a. Professor de quê? O seu nick: figo-da-índia . Seria sempre assim, feito fruta ou flor, que eu a encontraria.
Quer teclar comigo, jasmim-do-imperador? Conversamos, ou melhor, teclamos por mais de um mês antes que eu a convencesse a me dizer seu nome. Ela me deu uma lista com sete nomes, disse-me que escolhesse um. Decidi que seria Júlia. Telefona pra mim, por favor, uapê-da-cachoeira! Preciso ouvir a sua voz, andá-açu, meu taiuiá...
Ouvir-lhe a voz a tornaria mais real ? Indagou-me. Perguntei-lhe se era botânica, bióloga, uma velhinha de 70 anos apaixonada por jardins e pomares? Não, nada disso. Apenas alguém escrevendo uma dissertação de mestrado sobre as relações virtuais. O chat, seu campo de pesquisa. E eu, minha dilênia, meu sapatinho-do-diabo, seria eu sua cobaia?
Não que eu recusasse o papel! Que ela praticasse a vivissecção, que manipulasse, anatomicamente, as minhas emoções, transformando-as em capítulos da sua tese. Só não me diga adeus, minha marianeira, meu amor com gosto de pimenta-do-mato. O medo de pressioná-la e desse modo perdê-la, obriga-me a enviar-lhe apenas um e-mail por dia: flordeseda@nutte.com.br .
Telefonou-me, uma madrugada. Só podia ser setembro. Amor-perfeito, identificou-se. A sua voz, carregada de açúcar-mascavo, arrastou lembranças de eu-menino. Conte-me, onde você existe? Em que estado, em qual cidade a sua imagem desencarnada da máquina se incorpora a um corpo de mulher?
Foi então que me disse porquê resolvera manter-se em contato comigo. Ora, na adolescência estivera apaixonada por um professor de história , como eu. Além do mais, ela já teclara com centenas de chatmaníacos e nunca antes encontrara um que houvesse lido James Joyce, que cultuasse Mário Faustino, que amasse Lispector, como ela. Motivos suficientes, não é mesmo?
Enviou-me uma fotografia, isso foi antes que começássemos a fazer amor e depois do primeiro telefonema; a essa altura eu não precisava do reforço de um retrato, estava completamente envolvido. Tampouco foi a descoberta do seu sorriso, brotando de uma boca em floração, a cor dos cabelos, a exposição das suas pernas e braços no monitor que desencadearam o meu desejo. “Desejo físico da alma”, já definiu o poeta Fernando Pessoa.
Flor-da-paixão, toco você, acaricio os seus braços, beijo a sua boca, tiro o seu vestido, flor-de-amores. Oh, meu deus, eu quero o calor da sua pele. Sim... eu sinto o seu toque, me abraça., tâmara-do-deserto. Agarrados um ao outro, digito palavras entrecortadas que lhe dizem o que estou fazendo com o seu corpo. Você escreve, ofegante: vem.
Temos à nossa disposição todos os verbos. Reinventamos a linguagem dos sentidos. Eu a penetro com todas as letras, gozamos em todos os dialetos! Isso, descansa, minha fruta-de-anel, fica aqui, pertinho de mim, marquesa-de-belas...
Isso é só o que tenho. Errado. Isso é tudo o que preciso. Além desse medo mesclado à certeza de que uma sexta-feira qualquer Júlia não virá. Parece-mas-não-é, o nick que usou hoje, exalava o perfume do adeus anunciado.
Fixando intensamente os seus olhos que não me vêem, apanho uma das margaridas no vaso sobre a escrivaninha. Com delicadeza, começo a desfolhá-la: bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer...

Sandra R. S. Baldessin

*Coletânea de contos "Capitus?" -2003
** imagem captada em wwww.decembergallery.es.htm

sábado, 18 de dezembro de 2004

Pai dos burros

Rating:
Category:Books
Genre: Nonfiction
Author:vários
Esse é o carinhoso apelido que damos àquele livro enorme, de páginas fininhas, cheio de palavrinhas deliciosas que, eventualmente, se transformam em poemas, preces, letras de músicas, notícias de jornal. A quantidade de dicionários que existe hoje no mercado é enorme: dicionário de informática, de termos médicos, de bioquímica, essa lista não tem fim e acaba de ser engrossada por uma publicação de peso: um dicionário de mulheres!
Uma editora de dicionários, líder no segmento na Alemanha, lançou, em outubro, uma espécie de guia, “Alemão-mulheres – mulheres-alemão”, que traduzirá para os alemães as falas das mulheres, ou melhor, o que (eles supõem) está dito nas entrelinhas dessas falas. O grupo Langenscheidt, muito conhecido por seus respeitados dicionários de língua estrangeira, editou um guia que traduz frases femininas desconcertantes como "Vamos ficar abraçados" (a tradução, segundo o guia, seria: "sem sexo hoje, por favor!").
Os capítulos são divididos por assuntos que oferecem dicas de comportamento e revelam as obscuras mensagens ocultas nas frases mais corriqueiras do cotidiano, segundo o editor chefe da Langenscheidt.
Como sou o tipo de leitora para quem um pingo é letra, fico logo imaginando que este projeto é um tanto afrontoso para nós mulheres. Primeiro, porque generaliza situações e padroniza o comportamento feminino. Segundo, porque, como diria Haroldo de Campos, tradução é traição, já que é impossível ser fiel ao pensamento do autor, que dirá a pretensão de interpretar o sentido das nossas falas sem levar em conta, por exemplo, a expressão corporal, elemento fundamental para esse tipo de análise. Terceiro, porque reforça a tese de que somos complicadas e incompreensíveis, diga-se de passagem, para a grande e indiscutível sorte dos homens, afinal, que tediosa seria a vida se não fossem os nossos mistérios?
Segundo a agência de notícias Reuters, o tal dicionário já vendeu milhares de exemplares e, com menos de um mês de seu lançamento, já está no prelo a 3ª. tiragem - espero que seja uma conspiração feminina para tirar os livros do mercado. Bom, pelo menos o livro não foi escrito pelos americanos, aí sim teríamos uma versão brasileira fresquinha nas livrarias, no máximo até janeiro próximo.
Por enquanto, preserva-se o direito dos homens brasileiros de lerem e interpretarem suas mulheres usando o antigo método da tentativa e erro, e, assim, estamos todos salvos da monotonia.

Sandra R. Sanchez Baldessin

domingo, 12 de dezembro de 2004

ABRALI - Entreletras


http://www.abrali.com/015coluna_direita/sandra_baldessin/eliane_potiguara.html
Este mês, em minha coluna Entreletras, no portal da Associação Brasileira de Literatura, entrevisto a escritora indígena Eliane Potiguara, cuja história de vida vale a pena conferir, clicando na biografia.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

Momentos Especiais

Rating:★★★★★
Category:Other
“Paiê, ela existe?”

Saí para caminhar no Lago Azul, hábito diário, mesmo sob um chuvisqueiro leve que prometia transformar-se em uma chuvarada de verdade. Embora já passasse das dezoito horas, o espaço do Lago estava ocupado pela criançada e seus pais, tios, amigos, que foram participar da chegada do Papai Noel; vindos dos bairros mais distantes da cidade, estiveram participando de atividades recreativas o dia todo. Caminhando mesmo, apenas eu e um outro rapaz que também não dá folga para as pernas nem aos domingos.
Picolé e algodão doce para todo lado, balões coloridos e, principalmente, as feições encantadas das crianças, provocaram-me uma sensação de nostalgia, trazendo à lembrança outras épocas, outros natais. Esse tipo de sentimento é muito comum e incentivado nesse período do ano; refletindo sobre essas coisas, remexendo o baú do imaginário, continuei meu exercício, deixando o pensamento vagar.
Chegando em frente ao Centro Cultural, havia uma outra movimentação, bem diferente daquela observada no lado oposto do Lago Azul, onde se concentravam as crianças que vieram aguardar a chegada de Papai Noel. Provavelmente, haveria uma apresentação de balé e, dos automóveis estacionados no local, desciam as crianças e seus pais. Lindas meninas, com suas fantasias caprichadas.
Próximo, estava um homem arriado na calçada, cercado de um grupo formado por três garotas, com idades, talvez, entre os 6 e os 9 anos; desejei que ele não estivesse tão bêbado a ponto de não conseguir reconduzir as meninas para casa.
De repente, desce de um automóvel uma fada. Uma visão vestida de tule branco, luvas de cetim, minúsculas flores douradas bordadas na saia do vestido e uma coroazinha de pedras coloridas enfeitando a cabeça mimosa; nas mãos, a varinha de condão.
A menina mais nova, cujo pai estatelado na calçada estava alheio a tudo, se pôs a perguntar, a voz frenética de criança emocionada: “Paiê... paiê, ela existe?” Dava tapinhas no ombro do homem, puxava a camiseta, tentando chamar sua atenção: “Ela é ‘qui nem’ o Papai Noel que existe ‘mais num’ existe, hem paiê ?” Perguntava, apontando para a garota com fantasia de fada.
A fada caminhava assistida pelo cortejo familiar, enquanto a menina gritava sua pergunta repetidamente aos ouvidos surdos do pai. Não sei se foi essa minha alma de poeta que vê significado em tudo, mas a cena e, sobretudo, a frase “existe mas não existe”, desvendaram aos meus olhos esses dois brasis tão diferentes que um deles parece ao outro que não existe.
Seguindo o impulso, sorri para a fada e sua mãe ao mesmo tempo que pegava a mão melada de sorvete da menininha e lhe explicava que sim, a outra garota era tão real quanto ela; temi o gesto, que felizmente não veio, de recusa e afastamento. As mãos das meninas se tocaram, a varinha de condão trocou de mãos, por alguns segundos.
Deixando as duas para trás, continuei o meu caminho, pensando nas tantas coisas que existem mas não existem, como o Papai Noel, as fadas, os objetos mágicos das estórias fantásticas... Lembrei-me das palavras do poeta mexicano, Octavio Paz: “Em minha utopia política nem todos são felizes, porém todos são responsáveis”. Esta sim, é uma varinha de condão possível, viável: a responsabilidade social.
Lembrei-me, ainda, de uma brincadeira dos meus tempos de garota, que retrata, em sua simplicidade, a história desigual das crianças brasileiras: “Eu sou pobre, pobre, pobre, de marré, marré, marré... eu sou pobre, pobre, pobre, de marré, dessi...”
Para quem é aprendiz, a vida está cheia de lições.

terça-feira, 7 de dezembro de 2004

Aprendiz de Alice


Foi caminhando em direção à música. Não... não fora a música que primeiro o atraíra e sim o perfume. Os aromas de flores e ervas mesclados. Ladeou o canteiro de cravíneas, aproximando-se cada vez mais da casa de onde fluíam sons de risadas e conversas. Aquelas vozes! Há quanto tempo não as ouvia.
Sabia que ao atravessar a soleira da porta Alice viria ao seu encontro. Primeiro,chegaria o seu sorriso, a boca de tangerina, que ele se apressaria em devorar. Imediatamente ela colocaria em suas mãos alguma bebida gelada, os olhos pregados nos dele, tanto que ele experimentaria uma vertigem verde, como se matas e horizontes o penetrassem pela fenda do olhar.
O salão iluminado, o assoalho de tábuas compridas e brilhantes, enceradas até à exaustão, os vasos de cristal. Que cenário seria este?
Não se deteve na pergunta pois Alice já o chamava para dançar; um bolero... Por qual fresta do passado escapara aquela canção? Segurando as mãos dela viu de relance o anel de noivado, a esmeralda solitária que lhe oferecera há tantos anos atrás. Impossível!
O calor do corpo de Alice interrompeu suas reflexões. Meu Deus! Com que paixão ele a amava. A condição de noivos permitia que ele a abraçasse mais ousadamente, o seu próprio corpo submetido à tensão de um desejo quase insuportável. E Alice, plena da música, o rosto colado ao seu. Inquieta!
Ele observava, perplexo, o desfile dos rostos familiares das pessoas com as quais convivera por tantos anos: Tia Inácia, a solteirona que nunca abrira mão dos vestidos enfeitados e juvenis; Aluísio, com seus pulmões fracos, jamais tirava o casaco; os gêmeos, seus irmãos mais velhos; repentinamente, avistou-a sentada na poltrona, o eterno xale cobrindo as pernas, o olhar incisivo, fixo nele. A bisavó de Alice, D. Conceição. Comia canapés, mastigando-os devagarinho, como fazem os velhos.
“Não se case com ela. Alice possui o sangue rascante como vinho...o peito inquieto; ela ainda não sabe disso, apenas pressente sua própria fúria.”
Conselhos vãos. Quantos anos depois lembrara-se deles? Sem arrependimento.
Fora maravilhoso perder as esperanças ao lado dela. Fiel ao seus próprios anseios, ela o assustou desde a noite de núpcias quando, ao invés de dar, tomou.
A natureza, sábia, negou-lhe os filhos que ele tanto desejava, mais como uma forma de torná-la mais sua. Sua? Os cristais tilintando, a esmeralda brilhando no dedo delicado.
Demorou a entender que havia mais Alices do que as que poderia compreender, mas amou-as, todas elas, com uma ternura plena de renúncia. Dormia com uma, acordava com outra. Dormindo, ainda não era dele, embora o corpo abandonado ficasse à sua mercê por algumas horas. Ele mesmo não adormecia sem prendê-la (o seu corpo inanimado), agarrando-a pela cintura sempre esguia.
A primeira vez que ela cortou os cabelos bem curtos acreditou que finalmente partiria. Temeu, sabendo que a presença de tal ausência o sufocaria, implorou que ficasse, não precisava explicar mais nada, nunca mais ele faria perguntas, que mentisse, que fosse infiel, mas pelo amor de Deus, não levasse a boca de tangerina, o jeito de virar o pescoço, a risada de menina, não levasse para longe dele a vertigem verde do seu olhar. Ela apenas sorriu, abrindo braços e pernas para agasalhá-lo e acabar com seus medos. Conselhos vãos.
A música e o perfume. As vozes rompendo as barreiras do dia de ontem. Longos os anos das Alices, umas sucedendo-se às outras, procissão interminável. Amou nela todas as mulheres que poderiam tê-lo feito feliz, mas não com o tipo de felicidade desesperada que ela lhe ofereceu.
O aroma das flores mesclado com ervas. A esmeralda, brilhando ainda, nos dedos que se fizeram frágeis e trêmulos; nunca estranhou os cabelos brancos dela, a teia de rugas finas que se formou em torno dos olhos verdes, era mais uma Alice para adorar. Agora sabia, com certeza, que não lhe seria dado compreendê-la.
Morta, desejou-a com uma saudade infinita. Levou consigo a esmeralda para o aconchego da terra. Que cenário seria este?

Sandra R. S. Baldessin


* Esse conto foi um dos vencedores do Mapa Cultural Paulista - Categoria Literatura/Contos, 2002. Consta de uma antologia publicada pela Editora Universitária de Lisboa.
* imagem: obra do artista mexicano Ariel Pañeda Macías; disponível em www.urocirugia.com/cultura.htm

domingo, 5 de dezembro de 2004

Concerto de Contrabaixos

Rating:★★★★★
Category:Music
Genre: Other
Artist:Sexteto Tropical
Meu amigo Jaime tem uma coluna diária no Jornal Cidade, aliás, ele deveria entrar para o Livro dos Recordes - uma crônica por dia durante mais de 14 anos, o cara é fera. O nome da coluna é TOQUE RÁPIDO e partilho com vocês a crônica de hoje, sobre um concerto que assistimos juntos na última sexta-feira.

Sexteto de Contrabaixos

Seis músicos em cena com seis contrabaixos. Nada mais inusitado.O contrabaixo é um instrumento que o corpo toca e que também toca o corpo como num abraço. Abraço musical. O corpo gigante do contrabaixo e o corpo musical do contrabaixista.

Tivemos sexta-feira, no Ginástico, durante o 26º Concerto do Advento, a oportunidade raríssima de assistir a um concerto de contrabaixos.

É claro que um acontecimento desses é mais do que musical. Porque o contrabaixo, pelo seu tamanho avantajado, propõe uma dança, uma performance, uma teatralidade que vai além de um tocar tradicional. E isso se torna possível quando não se está em uma orquestra sinfônica, em que o contrabaixo é mais um em cena.

Seis contrabaixos e seis contrabaixistas, todos exímios músicos, proporcionam um espetáculo sonoro extraordinário. No começo, os contrabaixos parecem tímidos, discretos, não soltam a sua voz de dentro de suas cordas vocais-musicais. De repente, eles nos tomam por completo. E aí entramos no clima um tanto surreal de seis contrabaixistas e seis contrabaixos dialogando com o nosso prazer sensorial, de ver, de ouvir, de perceber algo de desconcertante nos tirando da mesmice e nos colocando em um espaço muito especial, o mundo dos contrabaixos, aí já não há mais resistência nenhuma.

O francês Tibo Delor, radicado no Brasil já há vários anos, formou em 2002 a Orquestra de Contrabaixos Tropical, que é o sexteto, e a partir daí, seis músicos

experientes, que conhecem profundamente a sonoridade de diversos instrumentos, fizeram imersão total nos contrabaixos, e conseguiram revelar para a nossa platéia e as demais que o contrabaixo é um instrumento mais rico em timbres e sonoridades do que poderíamos imaginar.

É possível extrair do contrabaixo os sons mais inesperados. E os músicos: Tibo, Beto Vianna, a quem já conheço há bastante tempo, Zé Alexandre Carvalho, Clóvis Camargo, Gustavo D`Ippólito e Neimar Dias, com humor, expressões de cômicos e de mímicos, nos levaram pelos mais diversos meandros da música e dos sons, no espetáculo “A Nota Filosofal”.

Em “Motos”, eles transformam os seus instrumentos em motocicletas, e viajam nelas, e os contrabaixos emitem ruídos de motor e de buzinas, numa disputa sonora incrível.

“Casa Forte”, de Edu Lobo, em arranjo de Beto Vianna, é um dos momentos mais expressivos do espetáculo, que teve muitos outros momentos vibrantes.

Eu estava totalmente imerso naquele mar de contrabaixos, quando a Sandra, ao meu lado, me despertou: -Olha aquela mulher de bobes. “Uma montanha de bobes”, segundo uma garota que também estava ali perto.

Perfeito. Num concerto de contrabaixos, nada mais normal do que uma mulher com muitos bobes na cabeça. Você acha normal um concerto de contrabaixos? A quantos você já foi até hoje?
Imperdível.

____________________________________________
Jaime Leitão é cronista, poeta, autor teatral e professor de redação.

TOQUE


Se me tocas,
toco o tempo materializado,
o sal abstrato
de palavras obscuras.

Se me tocas,
desencadeias a fúria
das estrelas
e a lua renasce,
virgem,
no céu negro da tua íris.

Se me tocas,
as flores desabrocham,
o mato cresce,
a terra produz seu fruto,
a vida se faz nova.

Se me tocas,
me torno a mulher que sou:
pão, vinho, azeite e mel;
transubstanciação
da natureza!

Sandra R. S. Baldessin

*imagem disponível em: www.univision.com.es/rociodiluna

sábado, 27 de novembro de 2004

Poema para esperar dezembro


DEZEMBRO

A carne de dezembro tem
cheiro de menina-moça:
concentra-se no ar,
Intoxicante, inebriante, recendendo
à fruta temporã.
Dezembro possui a cor fugaz
dos desejos de verão:
transitórios, efêmeros, matizando
a atmosfera circundante.
Não fala dezembro, cicia
com voz de amante, rumoreja
como os rios, o vento, a criança
no berço, a velha rezando o terço.
Dezembro recicla em sua usina
trezentos e sessenta e cinco dias,
intercepta a rotina, o tédio,
disseminando ao seu redor
o incenso da esperança.


Sandra R. S. Baldessin

Foto: Amante do Sol - Maresias/SP - setembro/2004


domingo, 14 de novembro de 2004

Maxine *


Escreve o meu nome direito, vai. É Ma xi ne, deixa ver se escreveu certinho, isso, Maxine. Pra falar tem que ser assim: mac cine. O sobrenome não tem que escrever, não. É da silva, as minina aqui da rua é quase tudo da silva, tem lorraine, michele, suellen, mas se for ver no registro do cartório é tudo maria aparecida. Eu não. Olhaí meu RG, viu? É Maxine.
Minha mãe, coitada, que casou virgem, deu pra filha menor o nome da puta de um filme que ela gostou, coitada, ficou com pena. De mim não tinha pena, se soubesse que eu caí na vida, minha mãe, coitada. Teve treze filhos: tudo jão, zé, Cida, tudo do Silva, o Silva que levou de brinde o cabacinho dela, além de conseguir alguém pra lavar suas cuecas de graça. Empregada, costureira e o que mais ele precisasse.
Viu que esse nome serviu de alguma coisa, não precisei inventar outro na hora de entrar na profissão. Mãezinha acertou no nome, acertou na receita também, que você pode olhar bem, não vai ver outra gostosa como eu por aqui, não. É mistura de italiano com caboclo, que minha mãe, coitada, era filha de caboclo e meu pai veio de gente italiana e portuguesa; italiana era minha avó Adolorata. Essa sabia odiar! Odiava mãezinha que enfeitiçou o filho querido dela com seu cheiro de terra molhada.
Foi dela que me vieram esses olhos clarinhos. A cintura fina e as coxas grossas vieram de mãezinha, coitada. O olhar não faz diferença na carreira de puta, mas as coxas, essas ajudam. Já o vô, Joaquim da Silva, gostava de nós tudo, mas não mandava nada, que o pouco dinheiro que tinha era dela, da nonna. Nonna dos outros netos, pra ela a gente fedia, era tudo vira-lata, cria de cachorro de raça com cadela de rua, mas minha mãe, coitada, casou virgem.
Não pense que estou na vida por falta de opção, como se diz por aí; eu tenho segundo grau, podia ser balconista, auxiliar de alguma coisa, podia. Podia até casar com um sujeito que depois de uns anos ia virar bêbado que nem meu pai e acabava me comendo no escuro e de graça. Isso é que não.
Tá sentindo meu perfume? Acha que balconista podia andar por aí com cheiro de mulher francesa? E depois, meu destino veio selado nesse nome: Maxine. No começo foi duro, pode escrever aí, eu tinha 18 anos e acreditava no amor. Achava que amar era quando a calcinha ficava molhada toda vez que o Nelson, filho da freguesa de roupa lavada da minha mãe, me abraçava e enfiava a língua na minha boca.
Tesão, só tenho por dinheiro. O sujeito pode ser velho, novo, barrigudo, careca, pode feder, pode me pedir a coisa mais estranha, e pode crer que pedem. Pagou, leva. Lembro da mãe, coitada, dizendo que a Maxine do filme falou para o galã: Eu não faço amor, faço dinheiro. Ela achava romântico isso, porque era mentira, porque a tal Maxine tava apaixonada pelo cara.
Mas, não essa Maxine, que assistiu de camarote as porradas que a mãezinha levava; culpada, culpada de ter acreditado no amor. Mas ela tá morta, que descanse em paz, coitada. E a avó Adolorata continua viva, que força não tem o ódio, me diz? O senhor tem certeza que o programa, a reportagem passa lá no interior de São Paulo também? Porque eu quero que ela veja a vira-lata na televisão. Vai, filma bem as minhas coxas e a minha cara lavada, que eu tirei a maquiagem pra ela me reconhecer, ela gosta desses programas de repórter.
O melhor homem que tive até hoje, e já tô na rua faz uns 15 anos, foi uma mulher. Eu vivi com ela uns tempos, dava aula na universidade e tinha dois filhos, tudo homem feito. O único homem que me amou e cuidou de mim. Quer saber como eu fiquei sabendo que ela tava morta? Num jornal velho, jornal de embrulhar verdura na feira, jornal do mês retrasado. Eu pensei que ela tivesse me abandonado, mas mataram ela num assalto. Foi quando eu descobri que ainda não desaprendi de vez a amar...
Não tenho mais nada pra contar, a não ser o dinheiro que o senhor vai me pagar pela entrevista, ou tá pensando que vou mostrar minha cara na televisão de graça?

Sandra R. S. Baldessin


* Este conto integra a coletânea "Todas elas" - inédita.
** Fotografia de quadro do artista Toulouse Lautrec; captada em: www.hstech.org/.../ setdsn/museum/met_photos.htm

domingo, 31 de outubro de 2004

FRIDA


o corpo
sobrevive
às traições -
cicatriz
na tela.

o corpo-mural
bandeira
de carne
(ex)posta:
ferida.

auto-retrato
da fera
frida -
tudo o que
lateja celebra
a vida!

Sandra R. S. Baldessin



* imagem captada em: www.mexico-info.de/ kahlo.html

O Mito de S�sifo

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Albert Camus
Leitura do Absurdo em Camus

Alguns escritores cativam de tal forma nosso imaginário que, ao longo dos anos, retornamos aos seus livros para beber novamente da fonte inesgotável de suas idéias. É o caso de Albert Camus, um dos grandes nomes da literatura universal, nascido na Argélia, na época colônia da França, em 1913.
Antes de completar 30 anos, Camus consagrou-se como escritor com o romance “O Estrangeiro”, obra de referência do Existencialismo francês; nesse mesmo ano, 1942, lançou o ensaio “O Mito de Sísifo”, no qual enfoca a questão do absurdo que viria a fundamentar toda sua produção ensaística e ficcional. A grandeza da expressão literária de Camus está relacionada à nítida perfeição estilística do seu texto, à criação de personagens tão bem construídos que sempre nos lembram alguém - nós mesmos.
Ao eleger o absurdo como alicerce de sua escrita, Camus envereda pela alma do homem, percorrendo os atalhos, examinando as encruzilhadas e clareiras, procurando trazer à luz a relação do eu com o mundo em toda sua complexidade , expondo a ânsia desse homem dividido entre fugir à fragilidade da condição humana e tendo consciência da impossibilidade de fazê-lo. Assim: “o absurdo nasce deste confronto entre o chamamento humano e o desrazoável silêncio do mundo”.
Através de suas personagens, Camus pergunta o tempo todo se a falta de garantias quanto à existência aliada à inexorabilidade da morte retira o sentido ao mundo e, conseqüentemente, à vida de cada um, prevalecendo, somente “este caos, este acaso-rei e esta equivalência divina que nasce da anarquia”. A descoberta dessa absurdidade explode em Mersault, personagem de “O Estrangeiro”, que mata um homem “porque fazia calor”; Mersault, que sentenciado à morte declara: “O que me interessa neste momento é fugir à engrenagem, saber se o inevitável pode ter uma saída".
Através de Mersault, Camus nos mostra como o homem possui esse caráter de estrangeiro, estranho no mundo e entre os outros homens que, no fim, são um só; todos empenhados no absurdo esforço de arrastar a pedra para o alto do rochedo, como Sísifo, e sabendo que ela desabará uma vez, e mais outra, e outra. Contudo, esperando, sempre, que o inevitável se torne reversível.
Para esse homem absurdo,“que, sem o negar, nada faz pelo eterno”; que tem a ousadia de viver no âmbito de seus limites, sem resignar-se ainda que esteja “certo da sua liberdade a prazo, da sua revolta sem futuro e da sua consciência mortal” a vida merece ser vivida mais e melhor, justamente porque ele concluiu que não há esperança e, assim, entendeu a beleza do agora, do momento presente.
Albert Camus nos diz, através de cada personagem, em cada uma de suas histórias, que o simples fato de estarmos vivos já faz com que a vida valha a pena. Dessa forma, a reflexão que traça ao longo de sua obra sobre o absurdo, o sem-sentido, o suicídio, a solidão e a morte, encaminha-se, gradualmente, para a esperança e a solidariedade humanas (que transbordam no romance “A Peste, de 1947) como possíveis soluções do drama do absurdo.
Camus, que ganhou um Nobel de Literatura em 1957, morreu em 1960, num acidente automobilístico. Deixou-nos como herança a sublimidade do seu testemunho de homem: “Amo a vida. Eis a minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto, que não tenho nenhuma imaginação para o que não for vida.”

Sandra R. S. Baldessin



domingo, 24 de outubro de 2004

Senhora de todos os aromas


Chegando o mês de outubro. Se tudo fosse como antes, outubro certamente traria os feitiços olorosos de abuelita. Jamais sentir, novamente, aqueles aromas... Essa é a verdadeira saudade. Sólida ausência do desejo mais volátil.
Saudade que me conduz pelo nariz. A receita do licor, que depois de pronto cruzava o oceano, não poderia ser repassada para outra pessoa senão para a filha primogênita; essa jurava nunca compartilhá-la, nem mesmo com as irmãs mais novas.
Do líquido marrom dourado, espesso, resultante das alquimias olfativas de abuelita, não bebíamos sequer uma gota. Era vedado, a quem fazia, provar. As vizinhas surgiam de todo lado, atraídas pelo aroma. Abuelita assava intermináveis fornadas de pão, tentando, sem sucesso, diluir “aquele” aroma, mascará-lo, impedir que se alastrasse despertando um desejo que não seria satisfeito.
As botellas, contendo o licor preparado em nossa casa, seriam acondicionadas em caixas e enviadas para um país que conhecíamos de nome e por fotografias, apenas. Cruzando dezembro, e o imenso oceano, viriam as nossas botellas, repletas do licor preparado por mãos desconhecidas, numa cidade também desconhecida que, agora sei, é chamada pelo nome de um famoso poeta: Lorca. Ah, quando a rolha da garrafa era retirada!
Era a terra, traduzida em grãos do mais puro café; era muito mais: o cereal maltado espalhando na casa os campos milenares de Al Maheda, fertilizados pelo sangue dos cruzados espanhóis; mais do que isso: todas as especiarias mescladas com a doçura das mãos sagradas das mulheres da família: interpretação de deus.
Da botella, o licor derramava-se em pequenos cálices (eles ainda existem). Segurávamos os cálices com as mãos em concha, inspirando profundamente, várias vezes. Assim, aprisionávamos o mito nos alvéolos, desde bem pequeninos.
Depois, sorvíamos, ritualmente; se na ocasião houvessem recém nascidos na casa, também eles teriam a ponta do nariz e os lábios molhados com o líquido. Abuelita – senhora de todos os aromas - repetiria orações e sinais que condenaram à fogueira as suas ancestrais.
Outubro, hoje, é saudade. E mais: é a dor funda de arrancar um nome pela raiz e nunca mais vê-lo florescer. Consolo possível é saber que a lenda, perfumado extrato de nossa história, prevalecerá, fragrante, por todas as gerações.



Sandra R. Sanchez Baldessin


* Castillo de Lorca, cidade onde nasceu abuelita.

A Poesia de Herberto Helder

Rating:★★★★★
Category:Other
Herberto Helder é uma das mais belas vozes da poesia portuguesa. Ao tocar a palavra-prima, o poeta vai fundo no seu cerne, buscando a possibilidade máxima que ela pode oferecer ao poema; é mais do que um desnudar da palavra, é um arrancar-lhe a pele até expô-la em carne e verso, como podemos conferir no poema que transcrevo. Um poema quase prece dirigido ao Amor, uma súplica poética plena de desejo: “dai-me uma mulher...quase incriada”. Um poema para ser desfrutado em toda sua intensidade.

O Amor em visita

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
o seu arbusto de sangue. Com ela
encontrarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob o s meus olhos palpitantes
ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! Em cada mulher existe uma morte silenciosa:
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, melhor nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria!

sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Mil e uma noites

Rating:★★★★★
Category:Other
Mil e uma noites

Uma homenagem a Nélida Piñon, escritora, entre outros tantos, que me ensinou a ter uma relação de desejo e prazer com a leitura.

Onde a pulsão de morte pede o gozo absoluto, a criação literária propõe o gozo estético; onde a pulsão pede o fim de toda a tensão vital, a literatura renova o jogo tenso entre a falta de sentido e o prazer da significação.
Maria Rita khell

Nélida me conta histórias sobre mim. Coisas incríveis que me aconteceram num tempo também criado por ela.
Primeiro, nós nos amamos. As mãos de Nélida são ela todinha... Mãos que aprendem o corpo da gente feito mapa de viagem. Ela nunca fecha os olhos, e quando goza eu descubro o endereço do éden.
Uma mulher como essa você não encontra: acontece na sua vida, como um cataclismo. E você fica como eu, sem antes nem depois, vivendo no presente decretado por ela. Não sei, mas penso que deve ser parecido com estar morto...Talvez, com não ter nascido ainda.
Depois, nua e aromática feito fruta que se come no pé, tece os meus enredos.
****
Eu não sabia, mas nasci milhares de anos atrás. No momento mesmo em que passava pelo túnel do seu corpo, a minha mãe cantava, guiando-me na escuridão entre o nascer e o nãoser. Rompido o aconchego do útero, paga a oferenda de sangue, a mãe ensina-me o caminho do seu leite.
Menino, transito no horizonte. Tudo ali é fronteira e os bichos que me habitam correm livres pelos campos. Há música, sempre, nesse lugar que não é onde; e sou o instrumento - tudo me toca. Todos os cheiros são o meu cheiro e exalando-me assim, penetro a essência das coisas.
****
Já vivi em cavernas. Inscrevi na pedra o texto do meu mundo. Atravessei a vida sem sabê-la continente. Persegui o sol, caçador e presa. Coletei sonhos quando não me concebia homem. Caminhei durante séculos e tive medo. Esse medo que sobreviveu nos genes dos meus filhos.
****
Também houve um tempo em que fui árvore. Amantes se entregavam um ao outro sob a minha sombra e depois me comiam, traduzida na doçura dos frutos. Crianças subiam pelos meus galhos, as suas risadas perpassando minhas folhas. Oculto pelo meu tronco, um homem tocaiou seu próprio irmão - o sangue atraiçoado regou minhas raízes...
Os homens, limitados pelo dia, passaram por mim. Eu permaneci até que a civilização perdesse a visão do sagrado.
****
Já fui rei, monge, escravo. Guerreiro, lutei as lutas dos outros e perdi só a mim mesmo. Tive mulheres, ou pensei que as tivesse – algumas me possuíram a alma, outras, subjugaram meu corpo. Aquelas que amei subjugaram-me a alma enquanto possuíam o corpo.
****
Todos os dias amanheço de olhos fechados. Gosto de procurá-la com o nariz. É como acordar na floresta. Respiro-a profundamente. Depois de aprisioná-la nos alvéolos, estendo os braços; as mãos, tateando no escuro, traçam a cartografia do seu corpo-planisfério.
Concentro-me para ouvir os seus sons de seda e pedra. Só então vou abrindo os olhos, devagarinho. Nélida transborda da cama. Toda pele e letra.
Nesse exato momento percebo que sou todos os personagens nomeados por ela e descubro que a minha verdade é tão somente uma construção de linguagem.

Sandra R. S. Baldessin

domingo, 10 de outubro de 2004

Cúmplices da flor


Eu não sou moderna. Sou arcaica. Pertenço à época em que o corpo falava e sabiam ouvi-lo. Você, sublime exemplar da racionalidade, não respeita quem, como eu, sabe com as entranhas e recorda com as próprias vísceras. Eu me permito sensações porque não planejo derrotar o corpo. Só quero ceder-lhe o espaço que exige. Você não pode me quantificar, sentimentos não são tributáveis. Por que lhe incomoda tanto que eu sinta?
Sou sazonal, guiada pelos movimentos do Sol e da Lua, e, quando você me olha, estou expandida em estrelas. E você não pode contá-las, que dirá ouvi-las! Eu floresço na estação certa e você não percebe que sou a única primavera que lhe resta?
Sou primitiva e por isso vital. Você, não! O seu credo pessoal resume-se à dicotomia cartesiana, mas, enquanto falo, vou inoculando o meu veneno, talvez haja esperança! Sou artesã, jamais operária, não posso permitir que um relógio me domine, que uma teoria qualquer me defina. Nunca! Acontece que eu tenho instintos e você só tem conceitos. Só aceita as mágicas da ciência e da tecnologia, eu não!
Eu creio nas minhas células e nos meus órgãos, no poder das minhas mãos, na antiga magia da minha pele... Eu sou desse planeta, o alienígena é você. Sou toda feita de água e terra, plena de plantas e bichos, meus olhos extravasam luar e da minha boca brotam jardins. Sou líquida e profunda como a noite e leio o temor que você tem das minhas trevas.
Eu fui entretecida no útero de uma mulher e não me esqueço dessa mágica; uma mulher me contou histórias de outras mulheres que sangravam como eu, lunares, arcaicas, eternas... O meu feitiço é mais poderoso que a sua lógica! Sou toda feita de incertezas, presságios e arestas, os meus rios não são navegáveis. Sou o abismo que lhe espera e a metade que não lhe falta, mas, ainda assim, lhe completa. Se você me amar, eu lhe prometo o inferno!

Sandra Regina S. Baldessin


* fragmento da novela inédita "Cúmplices da flor"
** imagem captada em: www.thesacredfeminine.com/divineunion.html

SOL AZUL

Start:     Oct 18, '04
Location:     S�o Paulo
O que? lan�amento do livro SOL AZUL - poemas de jos� roberto sechi com a vers�o visual de let�cia tonon

Quando? dia 18.10.2004 - 19hs

Onde? no beatnik blues cafe - rua oscar freire, 1919
(entre cardeal arcoverde e teodoro sampaio) pinheiros � s�o paulo.

Colet�nea de poemas editados artesanalmente.

Para saber mais sobre Sechi, acesse a minha coluna: www.canalrioclaro.com.br/colunas/?colunista=8





sábado, 9 de outubro de 2004

Bal�Ral�

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Marcelino Freire
O Coreógrafo do BaléRalé

Ler Marcelino é penetrar uma cortina de lâminas: o brilho que seduz é o mesmo que retalha. Ser retalhado é, no mínimo, incômodo; expõe a pele-de-dentro, a vida que habita o sangue. Faz com que esse leitor, atingido pela violência implícita “mãe que é mãe não esquece nada que seja faca, nada que seja enxada,nada que seja prego, nada que seja parafuso perto da filha” fique ao alcance de si próprio, ao alcance de sua própria e insuportável dor.
Os contos de BaléRalé (Ateliê Editorial, 2003), expressam a concepção freudiana do unheimlich; onde, por heimlich se compreende tudo que é íntimo, natural, doméstico, sendo unheimlich o efeito de estranheza que atinge aquilo que é conhecido e familiar; é o caso do conto “Papai do Céu”: “Papai chegou e meu coração pulou (...) ele disse que eu devia tomar banho de novo que eu não tinha tomado banho direito (...) papai diz que a espuma tem um gosto bom como o gosto da nuvem (...) e pede para eu colocar a espuma na língua(...) eu não gosto quando a mamãe demora em Carapicuíba porque o papai fica um tempão fazendo espuma (...) não gosto do gosto da nuvem branca não gosto do gosto da espuma branca que papai espuma”.
Esse toque de estranheza gera uma profunda ansiedade, como se algo que preferíssemos ignorar, subitamente aflorasse, como se viesse à luz aquilo que deveria permanecer em segredo; Marcelino manipula a lâmina da escrita construindo uma relação entre texto e leitor baseada na revelação da sobrevivência como um ato de violência permanente.
A estranheza gerada pelo texto se torna mais patente quando nos deparamos com a patética personagem protagonista do conto “Sagração da Primavera”: “Ai. O meu desejo é leve e vai com ele. O desejo vai ao céu.”; a personagem que “faria miséria para ser feliz” até mesmo “...virar o homem do garoto da minha rua.” E Marcelino, através de sua imensa reserva de poesia embutida na aspereza do cotidiano, redime sua personagem com a única justificativa possível: “Meu amor cega como purpurina. Purpurina cega. Purpurina pura.”
Essa poesia, nascida de uma dor indizível, também surge soberana no conto E Sombra; pode ser lida no delicado Kyoto, apaixonado por uma fotografia: “Olhar como um abismo é olhado. Um vôo iluminado. O que é isso? Nunca viu Soraya de muito perto. Nem sabe se a carne existe.”
A beleza triste e insidiosa de BaléRalé cativa o leitor, por obra e graça de um dos talentos mais instigantes da nova prosa brasileira. Vale cada letra lida e a emoção toda que Marcelino Freire sabe tão bem despertar.

• Marcelino Freire nasceu em 1967, em Sertânia (Pe) e vive em São Paulo desde 1991. Publicou Angu de Sangue (contos, 2000); eraOdito (aforismos, 2002, 2a. edição) e BaléRalé (contos, 2003), todos pela Ateliê Editorial. Em 2002, inaugurou o selo eraOdito editOra, através do qual lançou a Coleção 5 Minutinhos, idealizada por ele mesmo e que ganhou, em 2003, uma versão infantil, a qual contou com o apoio cultural da Imprensa Oficial e foi distribuída gratuitamente em todo o país.

quinta-feira, 7 de outubro de 2004

Fanatismo - Florbela Espanca

Rating:★★★★★
Category:Other

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!..."


O soneto Fanatismo, de Florbela Espanca, mereceu um estudo belíssimo de psicanalistas María Vitória Mamede Maia e Junia de Vilhena; o trabalho, intitulado " Fanatismo, completude e onipotência: o olhar da paixão", aborda o tema com seriedade e delicadeza.
Sob o ponto de vista literário, o soneto é, sem dúvida, uma obra-prima: metáforas ousadas e uma escrita intensa, típica daquela que, em minha opinião, é uma das mais belas vozes poéticas de Portugal.

quarta-feira, 6 de outubro de 2004

Manifesto em prol da saudade


Sempre me intrigou a questão sobre como as idéias vão se associando em nosso cérebro até formarmos um quadro completo sobre determinadas situações, concretas ou não. Considero quase um desafio percorrer as trilhas do pensamento e descobrir onde foi plantada a “idéia-prima”, aquela que desencadeou todo o processo.
É bem verdade que já encontrei a explicação neurocientífica e anatômica, complexas demais para a leveza que se pretende nessa crônica, mas, o que me fascinou foi a denominação dada a essas áreas onde se realizam esses processos: áreas silenciosas do córtex; cujas funções, até agora, apesar de exaustivamente pesquisadas não estão bem esclarecidas.
Que me perdoem os cientistas por definir poeticamente os seus enunciados, mas, gostei da possibilidade de haver uma ilha silenciosa em nosso interior, local onde vamos colecionando impressões e expressões que, dependendo do nível de atenção que dispensarmos a elas, poderão ou não aflorar. Mas esse não é o tema dessa crônica, é só mais um elo dessa cadeia associativa.
O primeiro fato que culminou com o ato de escrever esse texto aconteceu há uns 20 dias atrás, quando recebi a correspondência de um grupo de Filosofia da Linguagem do qual participo; um dos artigos falava sobre as palavras que tendem a desaparecer, pelas mais diversas razões. E lá estava, listado entre as palavras em extinção, o nosso vocábulo mais original, que carrega em sua sonoridade a alma trans-racial do brasileiro: saudade.
Guardei a informação, à qual, uns dias depois, veio associar-se outra, coletada no ensaio “Tempos Modernos”, do jornalista José Roberto Sant’ Ana, publicado na recém lançada JC Magazine. Quase finalizando o texto, Sant’Ana pergunta: “De que terão saudade os adolescentes de hoje quando se tornarem adultos?”
A indagação do jornalista, provocativa, revela a doença, essa sim, muito grave, da qual o desaparecimento da palavra saudade é apenas o sintoma. A doença da falta de pertencimento, da fragmentação identitária, cujo principal agente causador é a desvalorização dos laços afetivos em todos os níveis, aliado a um fator predisponente que tem se apropriado da alma humana, da sua inventividade, suas convicções e paixões: o consumismo desenfreado. Consumismo que conduz ao desapego de tudo que possui valor permanente, portanto, não pode ser substituído e, como tal, não tem valor de mercado.
Sabemos que a vitalidade da linguagem humana revela a imagem do homem no tempo e que mudanças sócio-culturais acarretam mudanças lingüísticas, e não vice-versa. Considerando o tecido da vida social, quando ocorrem alterações a língua acabará por refleti-las, assim, o esvaziamento de sentido da palavra saudade é sintomático de um modelo de convivência social que não desejamos.
Encerro essa “conversa” com os leitores propondo-lhes que viajem a essa ilha interior silenciosa e de lá resgatem tudo que é digno do sentimento de saudade: as ruas, bares e praças de nossa cidade; as lembranças da hora do recreio, nas escolas; os bons livros lidos, os filmes inesquecíveis, as músicas que marcaram o compasso de nossas vidas, os amigos, os amores e as dores bem vividas. Quanto mais não seja, pelo menos para preservar o patrimônio histórico, cultural e lingüístico representado pelo vocábulo.


Sandra Regina S. Baldessin


*Publicada originalmente no Jornal Cidade de Rio Claro. Julho/2004
** Fotografia do lago da Floresta Estadual Edmundo Navarro de Andrade.

domingo, 26 de setembro de 2004

Três poemas marítimos


MARESIAS

Além de mim
o mar:
diamante
líquido
útero e
abraço.
Ondas de
amar e
eu-sereia
indolente
aperto as
coxas
algemada ao
teu silêncio.

MAR
"verdes letras bravias"

Letras
não te exprimem
concreto
substantivo -
não-palavra;
substância e
deslinguagem.

Soletrando as
tuas vagas
o olhar
desaprende a
sintaxe.

MIRANDUM II

mar
temática
verde
geo
métrica
mente
assimilada
em vagas.


Sandra R. S. Baldessin

Imagem: fotografia tirada em Boracéia, litoral norte de São Paulo

sexta-feira, 24 de setembro de 2004

Amor L�quido - Sobre a fragilidade dos la�os humanos

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Nonfiction
Author:Zygmunt Bauman
Minha paixão pelo texto de Bauman dura alguns anos e vem se fortalecendo a cada novo livro publicado por esse instigante intelectual polonês. Zigmunt Bauman é reconhecido como um dos mais prestigiados estudiosos do mundo pós-moderno, sendo considerado um especialista na análise do cotidiano.
Seu mais recente livro – Amor Líquido – mais uma vez revela-nos o seu olhar agudo focado nos relacionamentos estabelecidos na “Modernidade Líquida”, título de outra de suas obras. Em Amor Líquido, Bauman constata a fragilidade dos laços afetivos e investiga a flexibilização das relações humanas e o quanto essa flexibilização têm contribuído para gerar níveis cada vez mais insuportáveis de insegurança.
A paisagem humana que Bauman esboça em Amor Líquido é dolorosa, e seu olhar sobre as “experiências amorosas” vivenciadas pelos sujeitos pós-modernos é bastante crítico, como fica claro na observação: “Em vez de haver mais pessoas atingindo mais vezes os elevados padrões do amor, esses padrões foram baixados”. Bauman constata o “desaprendizado do amor” e avalia as suas graves conseqüências que ultrapassam o plano das relações amorosas e familiares para atingir a sociedade, o lócus urbano, impossibilitando que aprendamos a ser verdadeiramente humanos. Bauman ensina que o preceito do amor ao próximo é o ato fundador da humanidade: “a sobrevivência de um ser humano se torna a sobrevivência da humanidade no humano”.
O longo processo de desaprendizado do amor, em nossa líquida sociedade, relaciona-se à vivência e formas de relacionar-se que obedecem aos princípios do consumismo, que se “caracteriza não por acumular bens”, e, sim, por “usá-los e descartá-los”, freneticamente. O homo consumens vê o seu próximo como um objeto de consumo, inclusive os seus próprios filhos, transformados em “objetos de consumo emocional”, nos quais investem tempo e recursos, e cujo valor é determinado pelo custo do investimento, já que “os filhos estão entre as aquisições mais caras que o consumidor médio pode fazer ao longo de toda a sua vida.”
Amor Líquido nos apresenta um cenário aterrador ao relatar os perigos que ameaçam o convívio humano, mas, não se converte em uma obra sombria, antes, faz um “alerta revigorante”, lembrando que “em nenhuma outra época a intensa busca por uma humanidade comum, assim como a prática que segue tal pressuposto , foi tão urgente e imperativa como agora”.
Espero que essa resenha aguce o apetite dos leitores. Conhecer Ziygmunt Bauman é uma aventura das mais emocionantes.

domingo, 19 de setembro de 2004

Sherazade


Guardo entre as
pernas
um livro.
Cem mil anos
não bastarão
para que o decifres...

Cartilha, sobre a qual
debruçado,
aprendes cegamente
o alfabeto
mesmerizante
dessa peletra...

Manual para desaprender
outros corpos
que já foram
capítulos do teu,
letramorfoseando-os
no meu.

Catálogo das delícias,
das mentiras
que prometo,
escrevendo-as com
lâmina febril
no teu imaginário.

Bula do remédio
que te avisa -
perigo: veneno;
(in)consciente tragas
além da dose que cura
a doçura que mata.

Evangelho profano
pelo qual rezas
(ritual pagão)
a oração primitiva,
sobre o altar de pedra
que chamamos Vida!

Sandra R. S. Baldessin

domingo, 12 de setembro de 2004

Não grite...Escreva!


Navegando pela internet, deparei-me com a versão virtual de um jornal francês, muito interessante: “Les militants de la solidarité” – “Os militantes da Solidariedade”, onde li a notícia que compartilho com os leitores, depois de traduzi-la, e claro, lançar sobre ela um olhar bem brasileiro. O endereço do sítio na rede, caso alguém queira ler mais: http://www.humanite.presse.fr
A notícia em questão relata que o escritor francês Ricardo Montserrat realizou um experiência inédita. Durante quatro meses, ele coordenou uma oficina literária no norte da França, em Roubaix, envolvendo 17 desempregados que tinham entre 17 e 53 anos. Do ponto de vista econômico, a região de Roubaix vem sofrendo muitos reveses; as grandes empresas que contribuíram para tornar próspera a cidade e aquela região – principalmente as indústrias têxteis – têm fechado as suas portas nos últimos anos, umas após as outras, transformando em desempregados dezenas de milhares de assalariados que, depois de algum tempo, não tiveram outra alternativa a não ser disputar o RMI (uma espécie de salário mínimo, bem mínimo mesmo, o qual podem pleitear os que não têm mais direito ao salário desemprego) ou, como sabem muito bem os brasileiros, virar mágico e sair fazendo truques para sobreviver.
Esta França que estamos apresentando, a França não gosta nem um pouco de mostrar ao exterior. Independente disso, ela existe e a situação de Roubaix não é nenhum fenômeno isolado: atualmente, no país dos Direitos Humanos, existem centenas de milhares de pessoas vivendo em condições indignas. Porém, nas manchetes dos jornais, anuncia-se por todo lado que as enormes empresas nacionais nunca tiveram tanto lucro. Quem será que “eurolucra” com essa desinformação?
Uma das características mais trágicas e marcantes destas situações é o silêncio que as cerca, encobrindo-as. Os desempregados, na França, devido a um poderoso condicionamento cultural, se calam, oprimidos pela vergonha e pela culpa. Freqüentemente, mergulham numa depressão profunda, que acaba por se tornar crônica, afinal, lá não tem carnaval onde eles possam sambar as mágoas.
Os desempregados franceses, vítimas de uma depressão silenciosa, como que se apagam, tornando-se transparentes, pois o país não quer que eles sejam vistos, ouvidos. O escritor Ricardo Montserrat compara esta opressão ocasionada pelo neoliberalismo (guardando as proporções devidas) à ditadura que ele conheceu quando vivia no Chile e participava da resistência cultural ao regime de Pinochet. Em ambos os casos, trata-se de reduzir ao silêncio os que são submetidos a uma ordem injusta.
Através da oficina de literatura com os trabalhadores desempregados, Ricardo buscou, sobretudo, quebrar esse silêncio, permitindo que esses esmagados pelo sistema retomassem a palavra. Mas ele ousou ir mais longe. Ousou, com estes homens e mulheres, escrever um verdadeiro livro para que esta fala se espalhasse, para que muitas outras pessoas pudessem se reconhecer nela, para que, desfeito o nó na garganta, a fala dessas pessoas se revestisse de força, expressando uma denúncia.
O livro acabou sendo publicado sob a forma de um romance, através da prestigiada coleção Série Noire, da Gallimard, sob o título “Ne crie pas” - “Não grite". Embora seja uma narrativa fragmentada, devido ao singular processo de elaboração, impressiona por sua intensidade e cumpre seu propósito de dar voz ao grito daqueles que, em qualquer país onde estejam, sobrevivem à margem do sistema que não privilegia como fundamental o desenvolvimento humano.


Sandra R. S. Baldessin


*Imagem: captada no sítio do Grupo Trastorns d'Ansietat.



terça-feira, 7 de setembro de 2004

Caçador-coletor


Ele me abordou e perguntou o que eu estava lendo. Minha primeira reação foi de surpresa assustada: se um desconhecido cercá-lo na rua, imediatamente você se lembrará das estatísticas da violência. Todos os dias terás medo do teu semelhante acabou se transformando na tradução de ama a teu próximo como a ti mesmo. Aliás, esse mandamento tornou-se muito perigoso, a julgar pela quantidade de pessoas com problemas de auto-estima que circulam por aí.
O maltrapilho, carregando um saco nas costas, despertou a mais atávica lembrança da infância – a avó materna assombrando as netas com a figura do “homem do saco”, entidade demonizada que poderia nos causar um mal nunca definido com palavras. Olhei para o homem, esconjurando os fantasmas e respondendo à sua indagação: são poemas, poemas do Cláudio Daniel. Julguei que surpreenderia nele um olhar vazio, mas não.
Conheço muitos poetas, afirmou. Por algum motivo, talvez sua fluência verbal, não duvidei. “Gostaria de ler um poema”. É duro admitir, mas pensei que eu não gostaria que ele tocasse em meu livro, nós não temos idéia de como somos insuportavelmente normais e assépticos até nos depararmos com uma situação dessas. “Você lê o poema, então.” Ele deve ter lido a minha hesitação.
“sou tigre/entre tigres/com tiques/de mico-leão”. Eu li os versos e olhei para o meu interlocutor, que fez um gesto de assentimento com a cabeça coberta por um boné imundo e recitou uma bonita trova, que, infelizmente, não me lembro para reproduzi-la aqui. Foi-se embora, o andarilho, deixando-me inquieta.
Fiquei pensando se nesses homens não restou, intacta, a herança dos nossos ancestrais, os nômades caçadores-coletores e, se restou, o que coletam e caçam esses andarilhos, enquanto nós, os “normais”, corremos atrás do tempo, ajuntamos dinheiro, acumulamos estresse, morremos enfartados...
Além dos prejuízos à saúde física, a vida sedentária, centrada na propriedade e no saldo bancário, está nos roubando algo de muito valor, ligado à nossa vida mais verdadeira: já não somos mais caçadores-coletores, já não saímos à procura dos paraísos possíveis. É disso que estamos morrendo, de uma espécie de banzo que temos de nós mesmos, de nossa capacidade de sonhar e estar sempre buscando.
De repente, me ocorreu que, árvores, temos lançado as nossas raízes em terrenos muito áridos, onde não florescem versos nem sonhos. Aquele andarilho e o seu desejo de poesia revelaram o caçador-coletor oculto em mim, renovaram a tão necessária incerteza que pode motivar a busca daquilo que é essencial coletar.
De minha parte, espero ser o andarilho daqueles que lêem essa crônica.

Sandra R. S. Baldessin

*foto: mulher da tribo Xokleng (sul de Santa Catarina) últimos caçadores-coletores do país.




















segunda-feira, 6 de setembro de 2004

Perdas e Ganhos

Rating:★★★★
Category:Books
Genre: Nonfiction
Author:Lya Luft
Relutei, antes de comprar o livro. Tantos comentários ouvidos, a maioria positivos, outros, bastante depreciativos. Confesso que tive medo que o meu “ídolo literário” me mostrasse os seus pés de barro, afinal, tínhamos uma longa convivência, que começou em 1980, com o romance “As parceiras” e atingiu o seu ápice em 1996, com o inesquecível e muitas vezes relido “Rio do meio”.
Que me perdoem os que nunca desfrutaram as delícias da paixão pela leitura, aqueles que nunca leram um texto cativante de um fôlego só, para depois “economizar”, quase no final, assaltado pela consciência de que o autor levaria pelo menos mais um ou dois anos para nos satisfazer com outra de suas histórias, mas, o meu temor era dos mais legítimos.
Enfim, comprei o livro. Foi direto para a cabeceira da cama, lugar cativo de todas as obras de Lya Luft, há mais de duas décadas. Não iniciei a leitura de imediato. Pensei no e-mail recebido da amiga Sylvia Tresca: “finalmente a sua querida Lya escreveu alguma coisa que a maioria dos mortais entende.” Estaria nascendo uma “Lya light”? “Mar de Dentro”, publicado em 2002, já se revelara uma escrita mais leve, como não poderia deixar de ser um livro de resgate das lembranças da infância, mas com o vigor do seu traço literário predominante que aparece, por exemplo, na pergunta: “A imaginação sem restrições seria uma viagem sem volta? Ninguém – nem eu mesma – me encontraria nunca mais.”
Comecei a leitura de “Perdas e Ganhos”, que ocupa há vários meses o topo da lista dos livros mais vendidos no país, pelo último capítulo: “Eu quis escrever um livro pequeno e prático sobre a permanente reinvenção de nós mesmos.” Não encontrei, é fato, a fala profunda da grande ficcionista. Em compensação, encontrei uma mulher serena, buscando transmitir sua serenidade conquistada a tantas outras mulheres. Talvez, até com alguns dos psicologismos ou fórmulas de auto-ajuda de que a acusaram alguns críticos. Uma Lya reinventada, que se atreve a nos dar conselhos, não do alto de seu triunfo literário, mas como o sujeito indeterminado que somos todos, nos mirando os olhos, uma “Secreta Mirada” que, mais uma vez, faz dos leitores os seus cúmplices.
Se a Literatura, enquanto conceito e teoria, perdeu alguma coisa, há que se considerar a relação risco-benefício: essa nova legião de leitores conquistados ganhou muito. Sobretudo, ouvidos para ouvir uma das mais importantes vozes da literatura brasileira.
Entre perdas asseguradas e ganhos possíveis, Lya Luft, acredito, conseguiu o que se propôs com esse texto: “Vem refletir comigo, vem me ajudar a indagar.”

Sandra R.S. Baldessin

sábado, 4 de setembro de 2004

Est�vamos todos l�



Por virtudes da mem�ria, esse software sofisticado que instalaram em nosso c�rebro, ou por quaisquer outras artimanhas, o fato � que me lembrei de minha av�, dizendo como nunca mais esquecera a roupa que vestia e o que estava fazendo, no momento em que ouvira pelo r�dio as terr�veis novas sobre Hiroshima. N�o tinha essa coisa de via sat�lite, n�o, que permite ao cidad�o assistir o massacre dos seus semelhantes, confortavelmente instalado na poltrona da sala, �beliscando� uns petiscos e tomando uma cervejinha gelada.
Abuelita, como a cham�vamos, n�o sabia nem nunca soube nada sobre a fiss�o do �tomo; mas sempre soube tudo sobre a irmandade dos homens, por isso, ao descrever o acontecido naquela cidadezinha da qual antes nunca ouvira falar, ela dizia: �� como se eu estivesse l�.�
Pois foi disso que me lembrei, no momento em que a televis�o come�ou a veicular as imagens do horror de Beslan. E nunca antes o dito de minha av� teve um significado t�o penetrante. Vivenciando um momento de aguda percep��o, tive a certeza de que realmente est�vamos todos l�.
A dor de um homem � a dor de todos os homens, atrav�s de todos os s�culos, ultrapassando as barreiras de tempo e espa�o. Est�vamos todos l�. Nos campos de concentra��o nazistas, em Hiroshima, em Ruanda, kossovo, na Arm�nia e, agora, em Beslan. Cada qual transubstanciado no seu semelhante.
A reflex�o sobre esses fatos desdobrou-se num questionamento que partilho com os leitores: a igualdade s� � poss�vel na dor? Parecem-me t�o unas, as m�es israelitas e �rabes que choram por seus filhos, as m�es brasileiras cujos filhos foram atingidos por balas perdidas, as m�es de Beslan... T�o irmanadas na perda, na aus�ncia de explica��es para o cotidiano tr�gico! Ser� que o humano se auto-engendra nos momentos de aniquila��o?
Eu n�o tenho respostas, sou do tipo que prefere as perguntas. Tamb�m n�o cultivo certezas, a n�o ser as certezas at�vicas, aquelas impressas no DNA da ra�a. Nesse sentido, estou certa que, no plano da iman�ncia, no qual vivemos, somos indivis�veis. Ningu�m precisa pregar a globaliza��o da dor: n�s a conhecemos desde sempre.
Onde n�o h� consolo poss�vel, que haja, pelo menos, poesia: eu quero o humano toque daqueles que latejam como eu!

Falo de Mulher

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Ivana Arruda leite
Das Falas de Ivana
Sandra Regina Sanchez Baldessin
Um dos livros mais instigantes que li nos últimos tempos foi escrito por Ivana Arruda Leite, escritora paulista, nascida em Araçatuba, que tem confirmado sua presença na cena literária nacional. Ivana, que é socióloga e atualmente vive em São Paulo, já publicou dois livros de poemas e, em 1997, lançou seu primeiro livro de contos: “Histórias da Mulher do Fim do Século” (Editora Hacker), além de participar em algumas das mais importantes antologias de contistas brasileiros publicadas recentemente. O livro ao qual me refiro como instigante, publicado pela Ateliê Editorial, em 2002, conduziu-me a uma reflexão: tem sexo a escrita? Tem voz o sexo condicionado pela moldura de uma sociedade falocêntrica? Utilizando a palavra como objeto de penetração, Ivana nos chama às falas no seu “Falo de Mulher”.
Realizando um trabalho de “desencantar a mente”, cada personagem de Ivana revela a falsa fragilidade e submissão do sexo feminino, mostrando-nos que esses conceitos são meras construções do tempo, alinhavadas por credos, civilizações patriarcais e modos de ser que prevaleceram contra o bom senso.
As mulheres de Ivana são impróprias para o consumo, na medida em que não se deixam “coisificar” como objetos estéticos ou domésticos. Fazem-nos lembrar de Adrienne Rich com “When We Dead Awaken” (Quando nós, as mortas, despertamos); da garganta de uma de suas “dolores” nasce o grito do eterno feminino: “por que só eu tenho que andar na linha?”
Ivana Arruda Leite vem para perturbar o cânone das autoras mais ou menos domesticadas, “escrevidas” e se escrevendo à imagem e semelhança da divindade trina: masculino, raça branca, heterossexual. As suas mulheres nos permitem repensar o papel e a fala das personagens femininas que andam se inventando no cotidiano trágico das famílias, das relações mães e filhos, macho e fêmea.
Em “Receita para comer o homem amado” Ivana nos permite uma incursão pela sexualidade feminina e pela oralidade, transportando-nos para um universo sensorial primitivo onde “no princípio tudo era boca”. Em que circunstância o lençol da noite de núpcias foi substituído pela toalha de mesa? “Devore tudo com talher de prata”. Cama e mesa, juntas, são representativas do casamento; Ivana, com declarada ironia, nos remete ao simbolismo da mesa e da alimentação relacionado à sexualidade feminina: comer ou ser comida, eis a questão!
Na outra face da mesma moeda, temos Adélia, cujas zonas erógenas foram todas transferidas para as papilas gustativas: “não me tire o único prazer que me resta na vida” ela implora para o homem que já não monopoliza o seu desejo, se é que algum dia o fez. Adélia, cujo sentido de carência se transformou num vazio devorador, traduzido em uma fome que não encontra pão nos corpos dos homens.
“Isabel, a princesa” é outra que tem fome: “a princesa nunca teve prazer no sexo” - retrata a vida insípida das mulheres que nunca contraíram dúvidas.
Raquel, Laura Christina, Berenice, Luísa, existe uma cadeia associativa entre todas essas mulheres; cada uma delas, de um certo modo, ultrapassou o ponto do não-retorno, deixando-se enredar nas fantasias de mulheres refinadas, inflamadas, introvertidas, perturbadas, mulheres com necessidades do absoluto, porque, afinal: “Mulher é tudo igual”.
Aos leitores dessa coluna, dou o conselho do Djavan, numa de suas belas canções: “um dia frio, um bom lugar pra ler um livro”; o livro de Ivana Arruda Leite, é claro.


domingo, 29 de agosto de 2004

A �ltima F�bula

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Liliana Laganá
A Última Fábula - livro de Liliana Laganá publicado pela Casa Amarela, nos conduz a uma viagem cujo destino é Fratterosa, uma pequena aldeia dos Apeninos, na Itália. Nossa guia, nessa viagem, é uma menina resgatada de sob as camadas de lembranças que o tempo não apagou e que compuseram a história da autora. Essa menina, que gentilmente nos abre o caminho de suas próprias recordações, leva-nos a vivenciar uma época de grandes dificuldades, a Segunda Guerra Mundial.
No livro, a menina, ao encontrar-se no vagão de um trem de carga que transporta refugiados da guerra, deparando-se com uma realidade quase insuportável conclui: “Mamãe disse que a guerra acabou, mas eu acho que não, acho que é uma guerra, esta minha, uma guerra ou uma carestia, essas são palavras de coisas ruins, nonna sempre dizia isso, e acho que é isso, ou uma outra coisa que não sei...” Mas, em meio a essa dor que não sabe nomear, a menina encontra um refúgio recordando-se das fábulas contadas pela avó - nonna Gemma.
Ao ler o livro de Liliana Laganá, geógrafa e mestra em literatura italiana, tive comprovada uma certeza: é possível reencantar mesmo a realidade mais dramática. Ao resgatar o mundo mágico das fábulas contadas pela avó, sobrepondo-o à paisagem fuliginosa do trem que a conduzia para longe da infância, Liliana recria uma Fratterosa interior, um lugar onde permanecem intactas e imortais as personagens dessas fábulas, a velha avó e a própria menina que, anos depois, vem nos contar as mesmas histórias.
Ao escrever partindo do real, recolhendo fragmentos de sua experiência e transformando-os em expressão literária, Liliana nos revela que não há esquecimento; a imaginação reforça os contornos do mapa da memória, aguça a sensorialidade e todos nós, leitores, sentimos o calor da cama de nonna Gemma: “Tudo nela era gostoso, os colchões de lã de carneiro, o acolchoado, também de lã de carneiro, os lençóis brancos e cheirosos de bucato”; ouvimos sua voz, encerrando mais uma fábula: “fui ao moinho/ moí a farinha/ contai a vossa/ que contei a minha.”
Sabemos que quando um narrador registra o seu tempo, transcendendo-o, realiza a verdadeira literatura, aquela que traz em si o dom de ser para sempre atual, sempre nova; nesse sentido, Liliana Laganá está cumprindo uma missão fundamental: transformou a sua nonna numa personagem de contos de fadas com poder de acalentar as noites de muitos leitores, ao mesmo tempo em que universalizou um recanto do mundo – Fratterosa, que pertencia somente a ela e hoje pertence a nós, seus leitores.
Ao ler o livro, entendemos que a última fábula nunca será contada, não enquanto houver memória, enquanto houver uma voz como a de Liliana nos contando histórias.