sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

Momentos Especiais

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“Paiê, ela existe?”

Saí para caminhar no Lago Azul, hábito diário, mesmo sob um chuvisqueiro leve que prometia transformar-se em uma chuvarada de verdade. Embora já passasse das dezoito horas, o espaço do Lago estava ocupado pela criançada e seus pais, tios, amigos, que foram participar da chegada do Papai Noel; vindos dos bairros mais distantes da cidade, estiveram participando de atividades recreativas o dia todo. Caminhando mesmo, apenas eu e um outro rapaz que também não dá folga para as pernas nem aos domingos.
Picolé e algodão doce para todo lado, balões coloridos e, principalmente, as feições encantadas das crianças, provocaram-me uma sensação de nostalgia, trazendo à lembrança outras épocas, outros natais. Esse tipo de sentimento é muito comum e incentivado nesse período do ano; refletindo sobre essas coisas, remexendo o baú do imaginário, continuei meu exercício, deixando o pensamento vagar.
Chegando em frente ao Centro Cultural, havia uma outra movimentação, bem diferente daquela observada no lado oposto do Lago Azul, onde se concentravam as crianças que vieram aguardar a chegada de Papai Noel. Provavelmente, haveria uma apresentação de balé e, dos automóveis estacionados no local, desciam as crianças e seus pais. Lindas meninas, com suas fantasias caprichadas.
Próximo, estava um homem arriado na calçada, cercado de um grupo formado por três garotas, com idades, talvez, entre os 6 e os 9 anos; desejei que ele não estivesse tão bêbado a ponto de não conseguir reconduzir as meninas para casa.
De repente, desce de um automóvel uma fada. Uma visão vestida de tule branco, luvas de cetim, minúsculas flores douradas bordadas na saia do vestido e uma coroazinha de pedras coloridas enfeitando a cabeça mimosa; nas mãos, a varinha de condão.
A menina mais nova, cujo pai estatelado na calçada estava alheio a tudo, se pôs a perguntar, a voz frenética de criança emocionada: “Paiê... paiê, ela existe?” Dava tapinhas no ombro do homem, puxava a camiseta, tentando chamar sua atenção: “Ela é ‘qui nem’ o Papai Noel que existe ‘mais num’ existe, hem paiê ?” Perguntava, apontando para a garota com fantasia de fada.
A fada caminhava assistida pelo cortejo familiar, enquanto a menina gritava sua pergunta repetidamente aos ouvidos surdos do pai. Não sei se foi essa minha alma de poeta que vê significado em tudo, mas a cena e, sobretudo, a frase “existe mas não existe”, desvendaram aos meus olhos esses dois brasis tão diferentes que um deles parece ao outro que não existe.
Seguindo o impulso, sorri para a fada e sua mãe ao mesmo tempo que pegava a mão melada de sorvete da menininha e lhe explicava que sim, a outra garota era tão real quanto ela; temi o gesto, que felizmente não veio, de recusa e afastamento. As mãos das meninas se tocaram, a varinha de condão trocou de mãos, por alguns segundos.
Deixando as duas para trás, continuei o meu caminho, pensando nas tantas coisas que existem mas não existem, como o Papai Noel, as fadas, os objetos mágicos das estórias fantásticas... Lembrei-me das palavras do poeta mexicano, Octavio Paz: “Em minha utopia política nem todos são felizes, porém todos são responsáveis”. Esta sim, é uma varinha de condão possível, viável: a responsabilidade social.
Lembrei-me, ainda, de uma brincadeira dos meus tempos de garota, que retrata, em sua simplicidade, a história desigual das crianças brasileiras: “Eu sou pobre, pobre, pobre, de marré, marré, marré... eu sou pobre, pobre, pobre, de marré, dessi...”
Para quem é aprendiz, a vida está cheia de lições.

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