Caminha apressado, esbarrando mesmo nas pessoas com as quais cruza. A mão esquerda, guiada por um comando superior, risca as fachadas das casas, das lojas. Isso é real, isso é real, isso é real. O suor escorrendo dos cabelos para o rosto, molhando o pescoço, as costas. Sente as virilhas úmidas. O suor, sim, o suor é uma prova incontestável de que ele também é real. Real enquanto matéria viva, apodrecendo sob o sol de janeiro.
Não consegue evitar, mete o nariz nas axilas. O cheiro azedo da decomposição que um dia será plena. Sente-se nauseado de tão feliz. Se está fedendo é porque existe. Basta-lhe essa compreensão. Assalta-o o desejo de se apalpar; vem tão intenso que é impossível resistir. Toca os próprios braços, o peito, os testículos, freneticamente. De fato, existo. E se existo, esta rua pela qual caminho também é real, e aquela árvore...
Dá uma pequena corrida até o final da calçada e abraça-se à arvore, um flamboyant. Inspira profundamente, esfregando o nariz, o rosto, no tronco. Vontade de rir e chorar enquanto gira ao redor do tronco. A canção, lembra-se daquela canção? Cantava-se de mãos dadas ao redor de uma árvore, num lugar tão distante chamado infância.
Por que partira de si-mesmo-menino, deixando o aconchego de um mundo que cabia no abraço da mamãe? É verdade que recusara-se até o limite das possibilidades! Mas, os braços, as pernas, desandaram a crescer; pêlos escuros, intrusos, nasceram em seu peito, no rosto, em seu sexo, e não adiantava mais a mãe chamá-lo “meu bebê”.
O anjinho de mamãe não se via mais no espelho. Já não era real. Quem seria, meu deus, aquele homem de olhos negros que o fitava tão surpreso? E o medo, sim, o pavor de que a mãe descobrisse que ele não estava mais ali? É verdade que ela parecia não perceber.
E não fora sempre assim? Lembrava-se de chegar em casa chorando, porque a professora insistia em dizer-lhe: você já está um homenzinho. Mentira que a mãe negava entre beijos: meu bebê, o anjinho da mamãe não vai crescer, venha no colinho da mamãe, venha. “Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta...”
Um guarda municipal o aborda. Que diabos está fazendo girando feito um doido em volta dessa árvore? Vamos, vamos, que maluquice é essa? Esta é uma cidade tranqüila, não gostamos de nenhum tipo de malucos. Vai ver... está drogado, é isso? Mas, era só o que faltava! Aqui não toleramos essas coisas, não! Apontava o dedo para o seu rosto enquanto falava e suas bochechas gordas tremiam. A voz saía estrangulada de uma boca sustentada por três queixos.
Seria real esse homem gorduroso metido numa farda azul escura? Estende a mão para tocá-lo, certificar-se de sua existência. O guarda agarra o seu braço estendido e começa a torcer. A dor é intensa. Se está doendo, então é real. Graças a Deus! Sorri, um sorriso que é uma careta de dor e de alívio e que o seu agressor interpreta como escárnio.
Seu filho da puta! Esta é uma cidade de gente normal; gente normal, entendeu? Olha ao redor, furtivamente, antes de desferir um murro nos rins do rapaz e, em seguida, outro que o atinge no nariz. Sangue, isso é sangue... Estou sangrando porque existo. Uma onda de insuportável felicidade domina o seu coração; felicidade que se extravasa através de um fluxo incontrolável de gargalhadas guturais.
Seu corpo está possuído de tremenda energia, a energia de saber-se real. Tenta abraçar o guarda, envolver aquela montanha de carne que tão generosamente demonstrou o quanto ele existe. Existe, na verdade, a ponto de sangrar! Quantas vezes, trancado no banheiro, ele próprio se infringira um corte com a lâmina de barbear, desesperado, precisando do testemunho da dor e do sangue para sentir-se parte da realidade.
Oh! Como ele ama aquele ser humano uniformizado, fedendo à cachaça e torresmo! Pensa que deveria dizer algo ao guarda, mas as palavras sempre lhe pareceram insuficientes para expressar seus sentimentos. Fica apenas olhando-o com devotada atenção. Sim, ele sabe reconhecer a fúria quando a encontra. Quase sempre se revela no ferro do olhar, nas mãos que se contorcem... Porém, a boca, claro, a boca é a testemunha mais fiel da ira: antropofágica, salivante.
Aproveitando-se do lusco-fusco, aquela hora estranha na qual as pessoas parecem desaparecer na névoa de si mesmas, o guarda arrasta sua presa até o automóvel, estacionado próximo dali. O rapaz não resiste. Acomoda-se no banco para o qual foi empurrado como se tivesse recebido convite para um passeio.
Não resiste nem mesmo quando o legítimo representante dos homens normais arranca-o com violência do veículo, esmurrando-o apaixonadamente. Caído, seu corpo jovem é chutado, a botina pesada contra suas têmporas. “Sambalelê tá doente, tá com a cabeça quebrada, sambalelê precisava, é de umas boas palmadas...”
A lua surge por detrás das nuvens no exato instante em que o guarda, abrindo o zíper das calças, revela a faca e o pênis, explodindo num orgasmo primitivo.
Lâmina e luar, mesclados, dão ao rapaz a ilusão perfeita dos olhos afetuosos de mamãe. Adormece, a sua voz acalentando-o. “ Dorme neném, que a cuca vem pegar...”
Sandra B.
* este é o conto que concorreu ao Mapa Cultural Paulista, mas não foi classificado para a
premiação final.