domingo, 12 de novembro de 2006

Imensa asa sobre o dia

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Antonio Mariano
Ouvi, certa vez, a afirmação que é mais fácil escrever um romance ou novela do que um conto. Concordo. Escrever um conto que consiga se apropriar das estruturas narrativas e, através delas, produzir um efeito singular no leitor não é tarefa fácil. E, observem, o termo ‘tarefa’, nesse caso, é muito pertinente.
Antonio Mariano, escritor paraibano, poeta consagrado, com seu Imensa asa sobre o dia, livro de contos que integra a Coleção Tamarindo, revela-se um excelente contista.
Imensa asa sobre o dia reúne 13 contos; os protagonistas de todas as histórias são nomeados Jailson, pelo autor. A paixão pela origem dos nomes me obriga a referir que, se Jah é o nome de Deus, as personagens de Mariano trazem o estigma de todos os filhos de Jah: a inexorabilidade da condição humana.
Particularmente, (já que sou viciada em Tchekhov – supremo mestre de todos os contistas - e em Cortazar, seu discípulo) observei que Mariano demonstrou, já nesse primeiro livro de contos, a característica principal de um contista com potencial para se destacar entre seus contemporâneos: seus contos possuem o delicioso caráter de jogo.
Essa função lúdica presente nos contos de Mariano se revela em toda sua expressividade no conto A construção do silêncio. O enigma doloroso da convivência humana surge no jogo de ‘gato e rato’ estabelecido entre o pai e o filho. O conto se dá justamente no momento em que as mentiras essenciais que sustentam essa delicada relação se tornam insuficientes, no instante limiar em que “é tarde para desistir”, como a própria personagem observa.
Aliás, o sentido de compreensão tardia de coisas fundamentais para a sobrevivência das personagens permeia todas as histórias e esse fator contribui para ampliar a imagem de jogo presente nos contos. Em Seguindo Alice, sobretudo, a crueldade embutida no conceito de ‘tarde demais’ se cumpre plenamente.
Assistimos as personagens se movimentando no tabuleiro labiríntico que Mariano construiu especialmente para elas e tentamos adivinhar se atinarão com a saída. Ilusão vã que alimenta os filhos de Jah.
Desde as pequenas mazelas até os grandes crimes e insuportáveis alvoroços da alma e do corpo, tudo que é comum ao homem está presente nos Jailsons de Antonio Mariano.
Destaco, ainda, dois dos contos mais instigantes da coletânea: O poeta e O dia em que comemos Maria Dulce. Em O poeta Mariano recupera um desejo surrealista: a possibilidade de viver como poeta, de poetizar a vida, ainda que jamais tenhamos escrito qualquer verso. Um pacato e invisível funcionário público enlouquece (ou chega à razão suprema) e se declara, irreversivelmente, poeta. O conto, em sua aparente simplicidade, revela a condição marginal do poeta e da poesia na sociedade contemporânea.
O dia em que comemos Maria Dulce foge ao realismo presente em todos os outros contos. Mariano utiliza recursos do gênero fantástico-maravilhoso para nos conduzir numa viagem insólita ao reino da fome e das pulsões inimagináveis: “Podia sentir o mormaço do corpo dela... O hálito que era como o bafo de um bolo assando, uma porção de caramelo saindo pelas bordas do tacho, um pudim fumegante, um doce de leite dando o ponto. (...) Minha boca encheu-se d’água.”
E mais não digo. Leiam o livro.

(Crônica Literária, Sandra B.)

A vingança dos objetos


XV Canto

lençóis no
varal
a tarde
branca se
alastrando em
nossos corpos -
velas ao
mar

Sandra B.

 

Imagem: Vênus e Marte. Boticelli. Disponível em:
http://pintoresfamosos.juegofanatico.cl/images/botticelli/venus_marte.jpg

Caribay e as cinco águias brancas


Description:
Essa história faz parte da mitologia dos Mirripuyes (antiga tribo da região dos Andes venezuelanos).
Integra uma coletânea de contos de tradição oral de vários povos, fruto de uma pesquisa temática que estou realizando e que aborda o tema paixão.

Ingredients:
Caribay e as cinco águias brancas
Tradução de Sandra R.S. Baldessin

Directions:
Esta é a história de Caribay, a primeira mulher criada. Ela era filha do ardente Zuhé (o Sol) e da pálida Chía (a lua). Caribay era formosa, manifestava-se como um gênio das florestas aromáticas. Podia imitar perfeitamente o canto dos pássaros e suas companheiras eram as flores e as árvores, com as quais passava os dias em alegres brincadeiras.
Certo dia, Caribay olhava o céu quando viu cinco esplêndidas águias brancas. A beleza de suas plumas despertou a paixão na linda jovem que começou a seguir as águias por todos os lugares, atravessando vales e montanhas, seguindo, incansável, as sombras das aves que se desenhavam no solo. Afinal, chegou a um lugar muito alto, e desse local pode ver que as águias desapareciam nas alturas azuladas do firmamento.
A tristeza tomou conta do coração de Caribay, pois ela desejava ardentemente adornar-se com as plumas das águias. Então, Caribay ergueu a sua voz e clamou por Chía, sua mãe. Não demorou muito e as águias surgiram novamente diante de seus olhos úmidos de lágrimas. Enquanto as imponentes aves voavam harmoniosamente, Caribay cantava com toda doçura, para atraí-las.
As águias, então, encantadas pelo som adorável do canto de Caribay, se quedaram, imóveis no ar. Carybay aproveitou essa imobilidade e correu até elas, para arrancar-lhes as penas, que sua paixão exigia que possuísse. Porém, um frio glacial petrificou suas mãos antes que ela pudesse alcançar as águias. Percebeu, então, que as aves, enfeitiçadas por sua voz, ao deixarem de voar ficaram enregeladas e se converteram-se em cinco enormes massas de gelo.
Caribay gritou, aterrorizada. Pouco depois, Chía se obscureceu e as cinco águias despertaram. Furiosas, sacudiram as suas penas imaculadas e, assim, toda a extensão da montanha se engalanou com a belíssima plumagem branca.
Os blocos de gelo do qual se libertaram as águias originaram as incomparáveis serras nevadas da Mérida. As águias simbolizam os cinco picos eternamente cobertos de neve, que são as plumas congeladas das aves. As grandes e tempestuosas nevadas que ocorrem no local são um cerimonial da natureza, que relembra o furioso despertar das águias. O sibilar do vento que acompanha a fúria das nevadas representa a doçura e a tristeza do canto de Caribay.

Imagem: Caribay e las aguias. Escaneado de "Mitos y leyendas de Latinoamerica.