domingo, 28 de agosto de 2005

A Poesia de Iracema Macedo

Rating:★★★★★
Category:Other
Resposta ao Anjo Gabriel

Agora que aprendeste a incendiar-me
e me adivinhas inteira dentro do vestido
agora que invadiste a sala e o chão de minha casa
agora que fechaste a porta
e me calaste com teus lábios e língua
peço-te afoitamente
que me faças assim
ínfima e sagrada
muito mais pornográfica do que lírica
muito mais profana do que tântrica
muito mais vadia do que tua.

***

As vestes

Enfrentei furacões com meus vestidos claros
Quem me vê por aí com esses vestidos
estampados
não imagina as grades, os muros
o chão de cimento que eles tornaram leves
Não se imagina a escuridão
que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me liberta dos seus laços.

***

Dandara

Eu só acreditava em Drummond:
‘o amor chega tarde’
Não conhecia o amor que fulgura sem aviso
esse que se sabe proibido
o amor que já se sabe perdido desde o início
Eu não acreditava no impossível
vinha tão sóbria, tão cheia de medidas
não conhecia o esplendor da queda
nem a violência dos abismos.

***

O espantalho

Ao meu redor cresce verde a lavoura
e eu sou de seca palha
Ao meu redor homens se movem e trabalham
e eu resisto imóvel ao meu ofício triste
Estou cercado de arame por toda parte
por toda parte assusto pássaros que amo
Meus braços estão abertos para o espanto
não para o trabalho ou o abraço
Meu corpo de palha seca
nunca sentiu a volúpia dos bichos
Vivo abismado e só
Escancarado sob a luz dos astros.

***

O TEU DEMÔNIO

O teu demônio me segue
anos a fio
ele tece flores para mim
divide meu corpo em partes
Ele me culpa
acena feliz por trás das labaredas
dança ao meu redor
cresce como uma planta
eu aparo suas bordas seu rabo seus chifres
O teu demônio me encanta
como um retrato antigo amarelado
uma xícara de louça no mercado
O teu demônio me espanta
canta para mim todas as noites
me arde me explora me atormenta
O hálito quente sobre a minha boca
a febre sempre
O teu demônio vai embora hoje
eu fujo dentro dele a galope
eu vivo dentro dele feito um passarinho
feito uma coisa miúda enorme pobre
dilatada como um crucifixo
dura como uma esmeralda
Me esmero e espero
um dia me chamo Laura
tu me abocanhas os peitos
eu te abocanho a alma .

* Iracema Macedo, poeta e professora de Filosofia; nascida em Natal, Rio Grande do Norte.







Pai Patrão

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Gavino Ledda
Gavino Ledda ou Gaínu de sus Ágües, como prefere ser chamado, é o aclamado autor de “Pai Patrão”, seu primeiro romance, lançado em 1975. O livro tornou-se mundialmente conhecido, principalmente após o filme homônimo dos irmãos Taviani, que ganhou a Palma de Ouro no festival de Cannes, em 1977.
Pai Patrão, certamente, é uma importante obra da literatura italiana, e sua relevância guarda estreita relação com o autor, cuja história de vida é retratada no romance. Gavino Ledda, filho de um camponês quase miserável, foi arrancado dos bancos escolares aos seis anos de idade, para desempenhar a tarefa de pastor conforme exigido pelo pai, seu “proprietário”.
A partir desse momento, Gavino vivenciou a infância trágica que descreve no livro; aos seis anos de idade, franzino e assustado, o pai o responsabilizou pela guarda do rebanho, e, depois de um curto período de ‘treinamento’, que o pai fez questão de marcar com uma violência furiosa, iniciou-se o período que ele chamou de “reclusão selvagem”. Numa das mais belas passagens do livro, o autor diz, referindo-se a si mesmo quando menino: “Agora eu também era uma semente e devia nascer e brotar (naskere e tuddire) sozinho no nosso campo, e seguir as leis do reino vegetal no pousio da solidão, como todos os pastorzinhos da Sardenha”
Assim, o menino, mais que experimentou, foi vivido pela solidão. Esse é o aspecto que mais chama a minha atenção na obra: creio que essa solidão, quase uma entidade, estabeleceu sua própria geografia no corpo e na alma de Gavino, muito mais do que as surras violentas que o pai aplicava para ‘ensiná-lo’. Muito mais do que a fome, a miséria, a falta de perspectivas, a solidão engendrou o futuro e improvável escritor.
O livro “Pai Patrão” surgiu como uma outra forma de expressar o seu grito: “De tanto em tanto eu soltava um grito no silêncio interminável e medonho do bosque. (...) Naquele tempo eu tinha medo daquele silêncio e o fato de eu próprio quebrá-lo, mesmo que com um grito em parte produzido pelo medo, dava-me coragem. Assim acontecia que o mesmo medo que eu tinha daquele silêncio gerava, através dos gritos, uma constante de coragem com a qual conseguia vencer o terror que aquele silêncio incutia em mim, com sua interminável monotonia.”
A solidão que orquestrava os gritos também foi mestra: “A solidão do bosque e o silêncio profundo do ambiente (...) que para mim já não era mais silêncio. De tanto ouvi-lo aprendera a entendê-lo e tornara-se para mim uma linguagem secreta. (...) Por causa da solidão, a natureza representava para mim um ‘você’ indefinido: o único ‘você’ amigo com quem podia me comunicar sem vergonha nem constrangimento.”
Gavino Ledda relata que a palavra chegou a perder a importância para o menino solitário que foi, pois os sons da natureza e do silêncio levaram-no a criar um dialeto próprio, íntimo, cantado e, nesse dialeto, ele renomeou o seu mundo.
Os anos se passaram, o menino deu lugar ao adolescente que, por sua vez, abriu caminho ao homem: “E mesmo sendo um pastor sem malícia, mais ingênuo que o carneiro que fecundava minhas ovelhas, dentro de mim rugia um furor de conquistar algo de que eu não tinha consciência. (...) O meu eu, que permanecera intocado com todos os seus recursos interiores, estava à espreita, à espera de um eventual renascimento.” Aproximava-se o momento em que deixaria de ser propriedade do pai e seu instrumento de trabalho, o momento da ruptura com tudo que a autoridade paterna simbolizava. A história dessa ruptura que, então percebemos, já se delineava desde o princípio.
Alfabetizado aos 20 anos, Gavino Ledda sentiu grande interesse pela escrita e pela língua, dedicando-se ao estudo da Lingüística e, posteriormente, tornando-se professor universitário; foi a descoberta do poder da língua e do diálogo (sempre considerado subversivo pela autoridade patriarcal) que transformaram o pastor em autor, narrador e personagem da sua própria história. E mais: ao narrar esta história, o camponês Gaínu de sus Ágües emprestou a sua voz a todo o seu povo, exprimindo uma realidade que supera aquilo mesmo que busca expressar. De “Pai Patrão” Gavino diz: “Isso não é um livro, é terra.”

Pai Patrão. Gavino Ledda. Berlendis e Vertecchia Editores, 2004.

Sandra B.

sábado, 27 de agosto de 2005

Feminina


Sigo,


sangrando em


ciclos


singrando


(po)mares


re


ciclando


opióides


sintetizando o (pro)


lixo.


 


Sandra B.


imagem: vintage. Disponível em: www.bianconero.com

domingo, 21 de agosto de 2005

De máquinas e seres vivos: Autopoiése - a organização do vivo

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Nonfiction
Author:Humberto Maturana
O biólogo chileno Humberto Maturana é o idealizador da chamada Biologia do Conhecimento; ele engendrou a teoria da autopoiése, ou seja, da autofabricação dos seres vivos. A leitura de Maturana tem influenciado muito o meu olhar sobre o mundo, sobre as pessoas.

Partilho alguns fragmentos de suas teorias, que embasam todo o seu pensamento:

"Todo fazer é conhecer e todo conhecer é fazer."

"Sistemas vivos sãos sistemas cognitivos, e o viver, enquanto processo, é um processo de cognição."

"A ética não tem um fundamento racional, mas sim emocional."

“A vida não tem sentido fora de si mesma; o sentido da vida de uma mosca é viver como mosca, ‘mosquear’, ‘ser mosca’; o sentido da vida de um cachorro é viver como cachorro, ou seja, ‘ser cachorro ao cachorrear’;o sentido da vida de um ser humano é o viver humanamente ao ‘ser humano no humanizar’. E tudo isso no sentido de que o ser humano é somente o resultado de uma dinâmica não-proposital.”


Prostituição, fantasia feminina [Flávia Fontes]

http://claudioalex.multiply.com/journal/item/445
Recomendo enfaticamente a leitura deste artigo.

sábado, 20 de agosto de 2005

você-você


Eu salvei você, foi para que sua imagem, a verdadeira você se salvasse. Foi para que essa você que me habita não se perdesse em si mesma. Foi por você. Você-você.


Não essa você que de repente se tornou você-sem-mim, essa que cresceu e se apoderou de você, essa cadela-de-você que criou língua e inventou a ladainha do adeus.


Ah, você-você sempre aceitou de pernas abertas as flores em troca das flores púrpuras que eu plantava no seu corpo. Já você-sem-você se atreveu a acreditar que o seu corpo lhe pertencia, que você-sem-você poderia levá-lo pra um lugar onde eu não estivesse e isso não podia ser.


Essa você-sem-você logo logo acabaria falada e com que cara que eu ia ficar? Diz você-puta! Mas você não! Você-você é aquela menina virgem do retrato em cima da TV... olha lá, eu-com-você no dia do nosso casamento.


Eu-com-você tinha que ser pra sempre, com você-você calma como está agora, pena que a outra-de-você cortou o cabelo assim, curtinho, mas veja só, eu botei o véu na sua cabeça e você-você está linda... tão linda.


Fecha os olhos, meu amor, é melhor dormir de olhos fechados... pronto... eu fecho pra você-você, fica deitadinha no meu colo, eu esquento você-você.


Eu sei que você-você entendeu que o meu amor não podia deixar aquela-puta-de-você ir embora de mim, embora de nós... agora não tem mais perigo dela-você levar você-você pra longe. Não se preocupe, eu salvei você...


 


Sandra B.


 


imagem: Jalouse. Captada em unit.bjork.com


 

domingo, 14 de agosto de 2005

Cronópios - Literatura e arte no Plural

http://www.cronopios.com.br
Recomendo enfaticamente este sítio. Alguns dos nomes mais expressivos da Literatura contemporânea estão representados ali, entre eles Glauco Matoso (na coluna O Jogo do Jugo, imperdível); Alcir Pécora; Micheline Verunschk; Márcia Denser e meu queridíssimo Marcelino Freire.

sábado, 13 de agosto de 2005

Obras de Nazareth Pacheco




A primeira vez que visitei uma exposição de Nazareth Pacheco, na galeria Brito Cimino/SP, tive uma experiência multissensorial, uma espécie de lucidez corporal.
Os trabalhos de NP traduzem agonia e êxtase, objetos que falam de seu corpo que é o nosso corpo, afinal.
Segundo sua própria definição, suas obras discutem: "a alteridade do feminino na impossibilidade de nomeação de um real de um corpo que goza." Ou, como ela mesma diz, retratam "a vida como violência permanente. Diálogo mortal entre Eros e Tânatos."

terça-feira, 9 de agosto de 2005

Destino


Uma vez que não


posso arbitrar sobre


minha vida,


passo a vivê-la


pela metade.


 


Quem sabe do meu


destino


não sou eu.


É o outro.


Quem me assalta na esquina


é dono da minha vida


 


Me faz desaparecer


apaga minha memória.


 


Quem quiser,


mata-me sem perguntas,


 ou desculpas!


 


Sandra B.


 


* transcriado a partir de um texto em prosa de Nélida Piñon – “O Jardim das Oliveiras”/ O Calor das Coisas – 1997