seja âmbar
o poema
furtado aos
intestinos da
palavra e
flamante seja
luz que recende
para sempre
inescrita
Sandra B.
imagem: Years of fear, 1941. Roberto da Matta. Museu Guggenheim, NY
seja âmbar
o poema
furtado aos
intestinos da
palavra e
flamante seja
luz que recende
para sempre
inescrita
Sandra B.
imagem: Years of fear, 1941. Roberto da Matta. Museu Guggenheim, NY
Los sueños
que tengo acariciado
si mezclan con
el universo.
Expresiones,
signos,
imágenes
si conjugan entre
las fronteras
del cielo y de la tierra.
No hay división,
sino que uno
punto ciego que
nosotros mismos
construimos y
lo llamamos
realidad.
Sandra B.
imagem: "Mirando al horizonte" óleo sobre tela de Leonor Maass.
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Books |
Genre: | Literature & Fiction |
Author: | Marguerite Duras |
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Other |
O rio sempre me foi janela. Meu avô pescava e eu, debruçada sobre as pedras, pescava estórias, na imaginação. Houve um rio e uma menina que o amava e foi vivida por ele. A água fria, o tempo frio, e o avô que se entendia melhor com os peixes do que com a família. O corpo d’água do rio misturado às minhas águas, às vezes claras, às vezes sangue,
Esse rio continua fluindo em tudo que escrevo...
o corpo d’água
das minhas águas
delta fecundo
fluindo para o
amar.
Sandra B.
* foto: uma das cachoeiras do Passa-cinco
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Other |
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Other |
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Other |
Nascera para deixar os homens esperando. O pai, seu primeiro e mais fiel adorador, contara-lhe segredos admiráveis sobre eles. Sacrificara, impiedoso, a sua própria imagem de macho arrogante para que ela pudesse ver - o homem - despojado do feitiço da virilidade.
Ela não tinha memória do dia em que percebera que ele estava empenhado em reconstruir-se nela. A mãe, praticante de uma submissão irônica, assistira, mais curiosa que preocupada, o aprendizado da pequena Adélia.
Na verdade, apenas quando a menina já contava catorze anos, a mulher, que passara a vida bebendo amargura, pressentiu, de forma agoniada, o destino que o pai pretendia lhe dar. Foi, entretanto, privada de assistir o desfecho das coisas. Morreu. Câncer de estômago.
Ele vivia com a boca seca. Quem deseja sabe. Planejara permanecer casado somente por dois ou três anos, no máximo. As mulheres nunca o atraíram e a convivência com elas parecia-lhe sufocante. Contudo, Adélia (colocara na filha o nome de sua avó, não que a amasse, apenas para seguir a tradição) não lhe permitiu tal opção.
Ele a amou. Compreendia que se amava nela, mistérios da incorporação. Sabia, também, que caso se separasse da esposa, Adélia estaria perdida para ele. Decidira ficar e tecer as tramas da vida da filha.
A esposa não se importara; a menina pertencia, sobretudo, a um nome. Tinha a vida penhorada. Ele não precisou disputar Adélia com ninguém. Eram apenas os dois. Cúmplices.
Cúmplices, sim, pois não lhe mostrara ele, aquela fotografia? Oh! Sim! Ela era um bebê. Ele montara cuidadosamente a câmera sobre o tripé, depois de ter depilado o tórax. Lambuzara os mamilos com mel e aproximara a menina para que ela os sugasse. Repetira muitas vezes o ritual. A mãe se recusara a amamentá-la: coisa animalesca, dizia.
Ao mostrar-lhe a foto, ela chorara. Devia ter uns dez anos. Ele também chorou, tomado de um sentimento de devoção. No dia seguinte ela menstruara. Ele mandou que ela lesse os livros de Jean Genet; ela leu o que havia para ser lido. Ah! Os segredos que compartilhavam...
Não temeu, nem mesmo quando viu a fêmea desabrochando feito flor daquela carne tão branca. Adélia crescera noturnamente. Ele presenteou-a com um objeto inesperado: que nenhum homem a surpreendesse virgem!
Ela adorava o poder. O poder de ser Adélia. Afiava os olhos nas faces dos homens que viviam cercando-a. Sabia que eles queriam muito mais do que ela poderia dar. Todo o seu ser estava comprometido com o homem com o qual celebrara ritos secretos de comunhão. Ritos doces como o mel.
Nunca. Nunca em toda sua vida desejara uma mulher. Mas, aquela, não era uma mulher. Era, talvez, uma obra de arte. De sua autoria. Ela praticava, contra ele, as lições que ele passara a vida ensinando-a.
Desejar doía. Com a carne dilacerada pela angústia da posse adiada, ele esperava, sempre. Não fora ele que a ensinara a tardar? Vez por outra ela atraía homens para a sua cama. Cúmplices.
Fora numa dessas noites que ele atinara com sua própria verdade. Adélia não era dele: era ele. Desta vez, presenteou-a com um terno, um belíssimo costume, feito sob medida, incluindo um chapéu.
Sandra B.
* Adélia. Coletânea "Capitus?"
Imagem: Bartira, de Miguel Ángel Perez.
antes
a tua boca
rompendo manhãs
depois
rompida a costura
das noites dias
fraturados.
Sandra B.
imagem: Lovers, Nicollette Canvas, 2002.
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Movies |
Genre: | Drama |
Olhos de quarenta
enredo
a boca re
inventa o
só (riso)
rede.
Na retina
a súbita
clareza:
resisto.
Sandra B.
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Books |
Genre: | Literature & Fiction |
Author: | Liliana Laganá |
“A beleza será convulsiva – ou não será” André Breton
Alice chega, acompanhada dos seus fantasmas. A lâmina, tão próxima da garganta, presa por um barbante encardido, circundando o pescoço alvo. O que mais corta em Alice são os seus olhos. Sílesis. Fragmentos de um espelho quebrado ornamentam as pernas da calça e conforme ela se aproxima vejo-me dividido em dezenas de figuras que vão se deformando.
Maracujás frescos. O beijo. A faca penetrando a carne da fruta e liberando seu aroma mais secreto.
O primeiro encontro foi na bienal de arte; Alice abordava as pessoas, carimbando-as com sua digital. O seu polegar, roxo de tinta, colou-se ao meu pescoço. O choque com as turquesas do olhar durou um segundo. Isso define você? Segurando pelo pulso a mão suja dela. Tornei a vê-la no finalzinho da tarde. Pensara nela algumas vezes, ao observar pessoas carimbadas pelos seus dedos. Ela mantivera contato com centenas de pessoas, mas, aparentemente reconheceu-me, pois acenou e fez um gesto apontando para a lanchonete.
Batom, não. Nem um único traço de maquiagem. Há pequeninas folhas de árvore coladas na camiseta. Viçosas, algumas, recém-colhidas. Pobre de mim, que pinto naturezas-mortas. Nela, tudo lateja, celebrando a vida.
Saímos juntos do Ibirapuera. Posso te dar uma carona. Moro longe. Tudo bem. O bairro é um bocado perigoso. Eu me arrisco uma vez por ano, pode ser hoje. O brinco na orelha esquerda é um dente-de-leite. As turquesas mirando bem de perto o meu rosto.
Esta aqui atrás, de rabo-de-cavalo. Mas é só um retrato na parede, não explica a aflição. Desde menina aquele olhar de quem estranha tudo. Má filha, péssima aluna, anticinderela.
Você quer me comer, não atravessaria a cidade toda só por um café. Eu aceito o café. As paredes estão cobertas de fotografias rabiscadas, semirasgadas, coladas a outras de forma irregular. Tem o michael jackson mamando as tetas de uma negra enorme e linda. E aquela imagem famosa do anjo da guarda, com auréola e tudo, as mãos redesenhadas agarradas às coxas da débora secco, lolitamaldita.
Objetos cortantes se espalham por todos os lados; reparo num prego cravado numa maçã, sobre a pia. É tudo muito limpo, o chão parece encerado. Um cheiro intenso de maracujá.
Refletida nos cacos de espelho, a imagem de um homem qualquer. A minha
Detesto que cuide de mim, que fique me perguntando se eu já almocei. Sim senhor, eu tomei banho e coloquei uma calcinha de algodão limpa, mas isso não me torna casta.
Comprei uma gravura, uma cópia do Andy Wharol. É pra você. É feito você. As turquesas crescem pra dentro de mim. Não me dê coisas, não goste de mim. Beijobeijobeijobeijo. Se é feito eu, guarda com você, pra me esquecer mais depressa. Nunca aceita o convite pra ir ao meu apartamento. Eu não gosto desse seu mundo sem arestas.
No primeiro encontro, foi só o café. No domingo seguinte eu arrisquei aparecer sem avisar (telefone está na lista dos objetos que Alice repugna). Tem aquela mulher que foi casada com um presidente americano, jackeline. A foto é antiga, preto e branco, ela está nua e há uma nota de 1 dólar cobrindo o sexo.
Aquela era a minha mãe. Ela chorava quando ouvia o Roberto Carlos cantando, mas não dá pra ver isso na foto. Hoje, você vai me comer, acabou o café.
O que é uma mulher? O que é esta mulher que ao se mostrar nua me arrasta para dentro das suas sombras? Tateio os minúsculos cortes em suas mãos. Ela é de verdade. A carne quente ao toque e a surpresa da ternura. Desde então, sempre a surpresa dessa ternura, ainda que selvagem, que jamais se manifesta em outra situação.
Alice fez uma incisão milimétrica nos olhos da adriana calcanhotto de onde vazam notas musicais coladas à maneira de lágrimas. Estaria a música no olhar? É a última imagem que vejo, antes de fechar os olhos e gozar.
Como assim, esquecer mais depressa? Alice, pertencida de abandono. Por que? Você acreditou que ia “constituir família” comigo? Eu preciso da ternura e do ódio também. Ai, meu deus, você queria que eu fosse uma personagem da bárbara cartland! Uma inglesa babaca que escrevia estorinhas de amor com final feliz, a minha mãe lia... História comigo não tem essa de feliz.
Eu não sei o tamanho da dor de Alice, mas deve ser grande e está presente em tudo; em seus gestos, nas fotografias que ela destrói-constrói, no cabelo assimétrico, cortado com faca, nos seus desenhos. Está no coração do seu corpo que eu penetro sem ilusão de possuí-la.
Ela empurra a gravura na minha direção e nem mesmo olha pra ver como é. Tenho que ir. Mas você nem chegou. Lembro-me de clarice: saudade só passa quando a gente come a presença. Explico pra ela, clarice, a escritora. Alice sabe que não estou falando de uma última transada antes da despedida inevitável. Sabe, sim.
Maracujás frescos. Os sucos de Alice. A faca desvendando o segredo da fruta.
Refletido nos cacos do olhar, quem sou não me reconheço.
Sandra B.
* O conto Alicenógena foi publicado pela Revista Cult, edição de abril; por conta dessa divulgação, fui convidada a integrar uma antologia de contistas latinoamericanos contemporâneos, editada pelo Centro de Estudios Literarios de la Universidad de Madri.
imagem: La donna - Egon Schiele. Disponível em: www.makilout.net
teu jardim.
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Other |
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Books |
Genre: | Literature & Fiction |
Author: | Gavino Ledda |
Sigo,
sangrando em
ciclos
singrando
(po)mares
re
ciclando
opióides
sintetizando o (pro)
lixo.
Sandra B.
imagem: vintage. Disponível em: www.bianconero.com
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Books |
Genre: | Nonfiction |
Author: | Humberto Maturana |
Eu salvei você, foi para que sua imagem, a verdadeira você se salvasse. Foi para que essa você que me habita não se perdesse em si mesma. Foi por você. Você-você.
Não essa você que de repente se tornou você-sem-mim, essa que cresceu e se apoderou de você, essa cadela-de-você que criou língua e inventou a ladainha do adeus.
Ah, você-você sempre aceitou de pernas abertas as flores em troca das flores púrpuras que eu plantava no seu corpo. Já você-sem-você se atreveu a acreditar que o seu corpo lhe pertencia, que você-sem-você poderia levá-lo pra um lugar onde eu não estivesse e isso não podia ser.
Essa você-sem-você logo logo acabaria falada e com que cara que eu ia ficar? Diz você-puta! Mas você não! Você-você é aquela menina virgem do retrato em cima da TV... olha lá, eu-com-você no dia do nosso casamento.
Eu-com-você tinha que ser pra sempre, com você-você calma como está agora, pena que a outra-de-você cortou o cabelo assim, curtinho, mas veja só, eu botei o véu na sua cabeça e você-você está linda... tão linda.
Fecha os olhos, meu amor, é melhor dormir de olhos fechados... pronto... eu fecho pra você-você, fica deitadinha no meu colo, eu esquento você-você.
Eu sei que você-você entendeu que o meu amor não podia deixar aquela-puta-de-você ir embora de mim, embora de nós... agora não tem mais perigo dela-você levar você-você pra longe. Não se preocupe, eu salvei você...
Sandra B.
imagem: Jalouse. Captada em unit.bjork.com