sábado, 10 de setembro de 2005

Alicenógena*



“A beleza será convulsiva – ou não será”  André Breton


 


 


Alice chega, acompanhada dos seus fantasmas. A lâmina, tão próxima da garganta, presa por um barbante encardido, circundando o pescoço alvo. O que mais corta em Alice são os seus olhos. Sílesis.  Fragmentos de um espelho quebrado ornamentam as pernas da calça e conforme ela se aproxima vejo-me dividido em dezenas de figuras que vão se deformando.


Maracujás frescos. O beijo. A faca penetrando a carne da fruta e liberando seu aroma mais secreto.


O primeiro encontro foi na bienal de arte; Alice abordava as pessoas, carimbando-as com sua digital. O seu polegar, roxo de tinta, colou-se ao meu pescoço.   O choque com as turquesas do olhar durou um segundo. Isso  define você? Segurando pelo pulso a mão suja dela.  Tornei a vê-la no finalzinho da tarde. Pensara nela algumas vezes, ao observar pessoas carimbadas pelos seus dedos. Ela mantivera contato  com centenas de pessoas, mas,  aparentemente reconheceu-me, pois acenou e fez um gesto apontando para a lanchonete.


Batom, não. Nem um único traço de maquiagem. Há pequeninas folhas de árvore coladas na camiseta. Viçosas, algumas, recém-colhidas.  Pobre de mim, que pinto naturezas-mortas. Nela, tudo lateja, celebrando a vida.


Saímos juntos do Ibirapuera. Posso te dar uma carona. Moro longe. Tudo bem. O bairro é um bocado perigoso. Eu me arrisco uma vez por ano, pode ser hoje. O brinco na orelha esquerda é um dente-de-leite. As turquesas mirando bem de perto o meu rosto.


Esta aqui atrás, de rabo-de-cavalo. Mas é só um  retrato na parede, não explica  a aflição.  Desde menina aquele olhar de quem estranha  tudo.  Má filha, péssima aluna, anticinderela.


Você quer me comer, não atravessaria a cidade toda só por um café. Eu aceito o café. As paredes estão cobertas de fotografias rabiscadas, semirasgadas, coladas a outras de forma irregular. Tem o michael jackson  mamando as tetas de uma negra enorme e linda. E aquela imagem famosa do anjo da guarda, com auréola e tudo, as mãos redesenhadas agarradas às coxas da débora secco, lolitamaldita. 


Objetos cortantes se espalham por todos os lados; reparo num prego cravado numa maçã, sobre a pia. É tudo muito limpo, o chão parece encerado. Um cheiro intenso de maracujá.


Refletida nos cacos de espelho, a imagem de um homem qualquer. A minha


 Detesto que cuide de mim, que fique me perguntando se eu já almocei. Sim senhor, eu tomei banho e coloquei uma calcinha de algodão limpa, mas isso não me torna casta.


Comprei uma gravura, uma cópia do Andy Wharol. É pra você. É feito você. As turquesas crescem pra dentro de mim. Não me dê coisas, não goste de mim. Beijobeijobeijobeijo.  Se é feito eu, guarda com você, pra me esquecer mais depressa. Nunca aceita o convite pra ir ao meu apartamento. Eu não gosto desse seu mundo sem arestas. 


No primeiro encontro, foi só o café. No domingo seguinte eu arrisquei aparecer sem avisar (telefone está na lista dos objetos que Alice repugna). Tem aquela mulher que foi casada com um presidente americano, jackeline. A foto é antiga, preto e branco, ela está nua e há uma nota de 1 dólar cobrindo o sexo.


Aquela era a minha mãe. Ela chorava quando ouvia o Roberto Carlos cantando, mas não dá pra ver isso na foto. Hoje, você vai me comer, acabou o café.


O que é uma mulher? O que é esta mulher que ao se mostrar nua me arrasta para dentro das suas sombras? Tateio os minúsculos cortes em suas mãos.  Ela é de verdade. A carne quente ao toque e a surpresa da ternura. Desde então, sempre a surpresa dessa ternura, ainda que selvagem, que jamais se manifesta em outra situação.


Alice fez uma incisão milimétrica nos olhos da adriana calcanhotto de onde vazam notas musicais coladas à maneira de lágrimas. Estaria a música no olhar? É a última imagem que vejo, antes de fechar os olhos e gozar.


Como assim, esquecer mais depressa? Alice, pertencida de abandono. Por que? Você acreditou que ia “constituir família” comigo? Eu preciso da ternura e do ódio também. Ai, meu deus, você queria que eu fosse uma personagem da bárbara cartland! Uma inglesa babaca que escrevia estorinhas de amor com final feliz, a minha mãe lia... História comigo não tem essa de feliz.


Eu não sei o tamanho da dor de Alice, mas deve ser grande e está presente em tudo; em seus gestos, nas fotografias que ela destrói-constrói,  no cabelo assimétrico, cortado com faca, nos seus desenhos. Está no coração do seu corpo que eu penetro sem ilusão de possuí-la.


Ela empurra a gravura na minha direção e nem mesmo olha pra ver como é. Tenho que ir. Mas você nem chegou. Lembro-me de clarice: saudade só passa quando a gente come a presença. Explico pra ela, clarice, a escritora. Alice sabe que não estou falando de uma última transada antes da despedida inevitável. Sabe, sim.


Maracujás frescos. Os sucos de Alice.  A faca desvendando o segredo da fruta.


Refletido nos cacos do olhar, quem sou não me reconheço.


 


Sandra B.


 


* O conto Alicenógena foi publicado pela Revista Cult, edição de abril; por conta dessa divulgação, fui convidada a integrar uma antologia de contistas latinoamericanos contemporâneos, editada pelo Centro de Estudios Literarios de la Universidad de Madri.


imagem: La donna - Egon Schiele. Disponível em: www.makilout.net


 


 

15 comentários:

XXXX YYYY disse...

Ternura, ódio, saudades, comer presença. Lâminas, olhares e outros objetos cortantes. Dores, desejo, defesas. Alice, uma fruta? Isso me lembra um livro que li. E uma pessoa que conheço.

Adorei seu conto.

XXXX YYYY disse...

Uau! Ótimo conto, Sandra, um destes raros que se tornam inesquecíveis. Quero escrever assim quando eu crescer.
Beijão.

Eliana Mora disse...

em primeiro, parabéns, a revista é boa e tu mereces
o conto é deveras ótimo, surpreende, aguça, tem pimenta e algumas doses de certo 'desconforto' do personagem - que arrastam o leitor.
Assim vais acabar na Acad. de Letras, mulher!
besos merecidos
El

Livia Santana disse...

Fiquei apaixonada.
Que mulher é essa, que texto é esse?????

Sandra, a cada dia você encanta mais. Texto divino.

E Fred, EU é que quero escrever assim quando eu crescer!!!!!!!!

Beijos, parabéns!

Sandra Baldessin disse...

obrigada, Luciene, é bom quando as pessoas gostam do que a gente comunica...
besitos

Sandra Baldessin disse...

uau! digo eu, querido poeta... não sabe como seu comentário me deixa feliz...
beso

Sandra Baldessin disse...

hum, querida EL, é ótimo que você tenha apreciado, afinal, tenho muita consideração por sua opinião.
besito afetuoso

Sandra Baldessin disse...

Ora, senhorinha Lívia, você está mimando essa sua amiga... mas eu adoro; e o seu novo conto publicado no Géh - Chuva - também não fica devendo nada a ninguém.
besitos, querida, é bom ter amigos como vocês.

Despudorada Alma Malmal disse...

olha. é .......sei lá, não sei o que dizer, me vi em alguns trehos de Alice...é perfeito...não por ter me visto, mas pela facilidade de ver cenas e pessoas assim a cada letra...

Parabéns, pelo conto, pela publicação , pelo convite e por vc...

malmal.....e bijo

Sandra Baldessin disse...

muito obrigada, querida. feliz por tê-la aqui.
besitos

Walter Sotomayor disse...

Gostei. Parabéns!

Sandra Baldessin disse...

Obrigada, Walter.

Jose Liborio disse...

Sabe, Sandra, eu li e reli seu conto, total e completamente arrepiado. Eu tenho essa forma de reagir à um texto tão forte e tão belo...
O convite que vc recebeu é só um reconhecimento à esse talento que vc nos brinda aqui.
Fico feliz com seu reconhecimento, acrescento o meu junto a um beijo de admiração.

Sandra Baldessin disse...

obrigada, José, por sua delicadeza para comigo. É bom quando o texto encontra ressonância na alma e no corpo da gente, não?
beso.

Jazz Milan disse...

Descobrindo os seus textos e gostando muito. Você escreve muito bem, as imagens quase em contraponto, um texto saboroso. Voltarei.