“A beleza será convulsiva – ou não será” André Breton
Alice chega, acompanhada dos seus fantasmas. A lâmina, tão próxima da garganta, presa por um barbante encardido, circundando o pescoço alvo. O que mais corta em Alice são os seus olhos. Sílesis. Fragmentos de um espelho quebrado ornamentam as pernas da calça e conforme ela se aproxima vejo-me dividido em dezenas de figuras que vão se deformando.
Maracujás frescos. O beijo. A faca penetrando a carne da fruta e liberando seu aroma mais secreto.
O primeiro encontro foi na bienal de arte; Alice abordava as pessoas, carimbando-as com sua digital. O seu polegar, roxo de tinta, colou-se ao meu pescoço. O choque com as turquesas do olhar durou um segundo. Isso define você? Segurando pelo pulso a mão suja dela. Tornei a vê-la no finalzinho da tarde. Pensara nela algumas vezes, ao observar pessoas carimbadas pelos seus dedos. Ela mantivera contato com centenas de pessoas, mas, aparentemente reconheceu-me, pois acenou e fez um gesto apontando para a lanchonete.
Batom, não. Nem um único traço de maquiagem. Há pequeninas folhas de árvore coladas na camiseta. Viçosas, algumas, recém-colhidas. Pobre de mim, que pinto naturezas-mortas. Nela, tudo lateja, celebrando a vida.
Saímos juntos do Ibirapuera. Posso te dar uma carona. Moro longe. Tudo bem. O bairro é um bocado perigoso. Eu me arrisco uma vez por ano, pode ser hoje. O brinco na orelha esquerda é um dente-de-leite. As turquesas mirando bem de perto o meu rosto.
Esta aqui atrás, de rabo-de-cavalo. Mas é só um retrato na parede, não explica a aflição. Desde menina aquele olhar de quem estranha tudo. Má filha, péssima aluna, anticinderela.
Você quer me comer, não atravessaria a cidade toda só por um café. Eu aceito o café. As paredes estão cobertas de fotografias rabiscadas, semirasgadas, coladas a outras de forma irregular. Tem o michael jackson mamando as tetas de uma negra enorme e linda. E aquela imagem famosa do anjo da guarda, com auréola e tudo, as mãos redesenhadas agarradas às coxas da débora secco, lolitamaldita.
Objetos cortantes se espalham por todos os lados; reparo num prego cravado numa maçã, sobre a pia. É tudo muito limpo, o chão parece encerado. Um cheiro intenso de maracujá.
Refletida nos cacos de espelho, a imagem de um homem qualquer. A minha
Detesto que cuide de mim, que fique me perguntando se eu já almocei. Sim senhor, eu tomei banho e coloquei uma calcinha de algodão limpa, mas isso não me torna casta.
Comprei uma gravura, uma cópia do Andy Wharol. É pra você. É feito você. As turquesas crescem pra dentro de mim. Não me dê coisas, não goste de mim. Beijobeijobeijobeijo. Se é feito eu, guarda com você, pra me esquecer mais depressa. Nunca aceita o convite pra ir ao meu apartamento. Eu não gosto desse seu mundo sem arestas.
No primeiro encontro, foi só o café. No domingo seguinte eu arrisquei aparecer sem avisar (telefone está na lista dos objetos que Alice repugna). Tem aquela mulher que foi casada com um presidente americano, jackeline. A foto é antiga, preto e branco, ela está nua e há uma nota de 1 dólar cobrindo o sexo.
Aquela era a minha mãe. Ela chorava quando ouvia o Roberto Carlos cantando, mas não dá pra ver isso na foto. Hoje, você vai me comer, acabou o café.
O que é uma mulher? O que é esta mulher que ao se mostrar nua me arrasta para dentro das suas sombras? Tateio os minúsculos cortes em suas mãos. Ela é de verdade. A carne quente ao toque e a surpresa da ternura. Desde então, sempre a surpresa dessa ternura, ainda que selvagem, que jamais se manifesta em outra situação.
Alice fez uma incisão milimétrica nos olhos da adriana calcanhotto de onde vazam notas musicais coladas à maneira de lágrimas. Estaria a música no olhar? É a última imagem que vejo, antes de fechar os olhos e gozar.
Como assim, esquecer mais depressa? Alice, pertencida de abandono. Por que? Você acreditou que ia “constituir família” comigo? Eu preciso da ternura e do ódio também. Ai, meu deus, você queria que eu fosse uma personagem da bárbara cartland! Uma inglesa babaca que escrevia estorinhas de amor com final feliz, a minha mãe lia... História comigo não tem essa de feliz.
Eu não sei o tamanho da dor de Alice, mas deve ser grande e está presente em tudo; em seus gestos, nas fotografias que ela destrói-constrói, no cabelo assimétrico, cortado com faca, nos seus desenhos. Está no coração do seu corpo que eu penetro sem ilusão de possuí-la.
Ela empurra a gravura na minha direção e nem mesmo olha pra ver como é. Tenho que ir. Mas você nem chegou. Lembro-me de clarice: saudade só passa quando a gente come a presença. Explico pra ela, clarice, a escritora. Alice sabe que não estou falando de uma última transada antes da despedida inevitável. Sabe, sim.
Maracujás frescos. Os sucos de Alice. A faca desvendando o segredo da fruta.
Refletido nos cacos do olhar, quem sou não me reconheço.
Sandra B.
* O conto Alicenógena foi publicado pela Revista Cult, edição de abril; por conta dessa divulgação, fui convidada a integrar uma antologia de contistas latinoamericanos contemporâneos, editada pelo Centro de Estudios Literarios de la Universidad de Madri.
imagem: La donna - Egon Schiele. Disponível em: www.makilout.net
15 comentários:
Ternura, ódio, saudades, comer presença. Lâminas, olhares e outros objetos cortantes. Dores, desejo, defesas. Alice, uma fruta? Isso me lembra um livro que li. E uma pessoa que conheço.
Adorei seu conto.
Uau! Ótimo conto, Sandra, um destes raros que se tornam inesquecíveis. Quero escrever assim quando eu crescer.
Beijão.
em primeiro, parabéns, a revista é boa e tu mereces
o conto é deveras ótimo, surpreende, aguça, tem pimenta e algumas doses de certo 'desconforto' do personagem - que arrastam o leitor.
Assim vais acabar na Acad. de Letras, mulher!
besos merecidos
El
Fiquei apaixonada.
Que mulher é essa, que texto é esse?????
Sandra, a cada dia você encanta mais. Texto divino.
E Fred, EU é que quero escrever assim quando eu crescer!!!!!!!!
Beijos, parabéns!
obrigada, Luciene, é bom quando as pessoas gostam do que a gente comunica...
besitos
uau! digo eu, querido poeta... não sabe como seu comentário me deixa feliz...
beso
hum, querida EL, é ótimo que você tenha apreciado, afinal, tenho muita consideração por sua opinião.
besito afetuoso
Ora, senhorinha Lívia, você está mimando essa sua amiga... mas eu adoro; e o seu novo conto publicado no Géh - Chuva - também não fica devendo nada a ninguém.
besitos, querida, é bom ter amigos como vocês.
olha. é .......sei lá, não sei o que dizer, me vi em alguns trehos de Alice...é perfeito...não por ter me visto, mas pela facilidade de ver cenas e pessoas assim a cada letra...
Parabéns, pelo conto, pela publicação , pelo convite e por vc...
malmal.....e bijo
muito obrigada, querida. feliz por tê-la aqui.
besitos
Gostei. Parabéns!
Obrigada, Walter.
Sabe, Sandra, eu li e reli seu conto, total e completamente arrepiado. Eu tenho essa forma de reagir à um texto tão forte e tão belo...
O convite que vc recebeu é só um reconhecimento à esse talento que vc nos brinda aqui.
Fico feliz com seu reconhecimento, acrescento o meu junto a um beijo de admiração.
obrigada, José, por sua delicadeza para comigo. É bom quando o texto encontra ressonância na alma e no corpo da gente, não?
beso.
Descobrindo os seus textos e gostando muito. Você escreve muito bem, as imagens quase em contraponto, um texto saboroso. Voltarei.
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