domingo, 31 de julho de 2005

Braille


Cega


reconheço pelo


tato os


contornos e


texturas


da linguagem.


Compreendo:


já não me leio


nas letras que


me definem.


 


Sandra B.


 


*imagem: La curiosite, Reina de Cordieus, 1999.

Frutos do mar

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Pedro Garcia*
Dos frutos de Pedro

Não é nas estantes das bibliotecas ou das livrarias que se descobre um poeta. Não. Ali, nós apenas observamos os nomes, alguns bem conhecidos, outros nem tanto. Também não basta folhear as páginas dos livros, tampouco praticar uma leitura superficial. Podemos até dizer: “ah, esse livro eu já li” ou “esse poeta eu conheço”. Não se trata, ainda, de ter sido apresentado ao poeta e talvez ter trocado com ele um aperto de mãos, e sair, levando para casa um livro autografado.
Descobrir um poeta é ato que exige calma. Exige longos silêncios e a busca daquela espécie de solidão povoada das imagens que o poeta vai construindo à medida em que mescla sua imaginação à palavra-prima. Poucas coisas na vida oferecem tanto prazer como descobrir um poeta. Pensando assim, entendemos porque o educador Rubem Alves defende que precisamos ter uma relação erotizada com a leitura.
Venho convivendo e descobrindo a poesia de Pedro Garcia* há pelo menos três anos. Sendo leitor-destinatário, não me interessa quando o livro foi publicado, e, sim, quando finalmente chegou às minhas mãos;“Frutos do Mar”, por exemplo, me chegou quase vinte anos após sua publicação.
A poética de Pedro Garcia cativa-nos pela delicadeza da combinação de palavras, principalmente naqueles poemas cujo tema pode parecer grotesco: “a forca fascina pela forma de forca/pelo laço móvel sobre o pescoço/pela fragilidade do bicho-homem exposto” . Na forca, como no poema, sobressai a beleza da forma e a constatação da fragilidade do poeta, aqui representado pelo bicho-homem e representante dessa espécie frágil, exposta em laço e letras; uma beleza que, aquele que conhecer, morre. Ou melhor, uma beleza que está além da possibilidade de conhecimento: “o que atemoriza na forca (...)/é a fragilidade humana – toda- naquela/ expressão trágica de impotência”.
A delicadeza marca o tom de todos os poemas, e, muitas vezes, surge mesclada à sensualidade: “seio escultura/lábio pintura/perna metálica/ranger porta/planta (verde clorofila)/amada deitada (relva)/amante (tronco)/sorriso/festa dança/ranger porta/(uma clareira verde sobre o jornal)/crença sol”.
A poesia de Pedro Garcia agrada-me, sobretudo, por valorizar a palavra como razão inequívoca do poema; por definir o trânsito da palavra pelo poema: “Sabes de alguém, em tênue desespero, suspenso por leves fios/de aranha, que de noite, com longos e afilados dedos/dedilha à janela do meu quarto uma sonatina de compositor barroco?”
Em sua poética, a pureza da palavra-prima não fica obscurecida pelo cinzelar do poeta, como se este pudesse conferir-lhe beleza, mas, o trabalho do poeta é polir até que essa beleza inerente à palavra aflore: “deus esperando-me na eternidade cansativa:/ e eu já rochedo/já pedro-pedra/já quase jasmim meu braço pendente já erva desfeito de identidade” E, quando aflora, revela na forma e no conteúdo o caráter de inventor do poeta: “para cada ser de asas/que invento/com pernas e penas/e bicos e bocas/há um sol/(estrela luminosa)/a iluminar-lhes contradições”
O poema surge encarnado na palavra que lhe empresta sua carne para manifestar-se e preservar o que precisa ser guardado na memória: “e assim conservados os sons e as cores sejam as palavras corporificadas neles”
É no poema que descubro o poeta; é no poema que experimento a redescoberta da palavra em sua infinita possibilidade de ressignificação da vida, do cotidiano, dos seres. É necessário ter calma para vivenciar esse processo. Há que se ruminar, como queria Nietzsche: “(...)é imprescindível ser quase uma vaca e não um ‘homem moderno’” .
O prazer é garantido: palavra de leitor!

*Pedro Garcia, poeta, educador, antropólogo; entre 1960 e 1979 o poeta publicou Ilha Submersa, Paisagem Móvel e Trapézio &Trapezista; Frutos do mar foi publicado em 1986 e, em 1993, foi lançado o livro de poemas Escadas Improváveis.

imagem: fotografia de Lívia Alessandrini.

domingo, 24 de julho de 2005

Devaneios com Egon*



Ele me olha e avisa que vai me pintar. Os olhos, febris, analisam os meus ossos. Eu anuncio que minha carne se lê com as mãos, e sorrio. Penso em Egon, que ele, claro, não conhece. Morrerá aos vinte e oito anos?


Quero lhe falar sobre Schiele, e me cubro, já assumindo ares didáticos. Desnuda! Ele me ordena, e se assusta. Desnuda? Seja. Emudeço.


Ele abre as janelas e ajoelha-se ao lado da cama, misturando cores. As mãos, tintas de azuis e vermelhos, se mudam para o meu corpo. Na tela de nácar se nomeia o meu silêncio: caminhos-dentro que não percorri.


Suas mãos nomearão o que se abriga em minhas entranhas?  Meu corpo tocado tocante tocata vai se cumprindo a cada pincelada desferida por seus dedos. Egon, eu te batizo. Ele me enterra as unhas nas coxas.


Foi assim que eu descobri que ele me possuía. A mim, que desejei metabolizá-lo como a coisa viva que era; fazê-lo meu semelhante, coisa de carne e sangue da qual eu podia me apropriar. Ah, que longa a jornada antes desse lúcido momento! De repente percebo que, sim, estará morto aos vinte e oito anos. 


Sandra B.


*divagação ficcional em torno do artista Egon Schiele, um dos mais inquietantes expressionistas.


* imagem: "Embrace Lovers"

sábado, 23 de julho de 2005

Hillary e Jackie

Rating:★★★★★
Category:Movies
Genre: Drama
Para saber mais sobre a vida da celista Jacqueline Dupré. O filme é comovente e a trilha sonora, divina. O filme conta a história das irmãs Hillary e Jackie, e do longo percurso até que se tornassem fraternos os laços de sangue que as uniam, além de retratar a vida de Jacqueline.

Hillary and Jackie, Inglaterra, 1998) Direção: Anand Tucker. Elenco: Emily Watson, Rachel Griffiths, James Frain, David Morrisey, Charles Dance, Rupert Penry-Jones. 125 min.

Boneca torta*


Aplausos. A intensidade deles a inebria, sempre. Não é nada parecido com o que sente quando está a sós com ele, claro, mas, também fazem com que o coração dispare. A sensação mais parecida com aquela que a domina quando está com ele, trancada, ela experimenta ao ouvir suas próprias gravações. Nesses momentos, ela esquece o cansaço extremo e a debilidade que a tem perseguido nos últimos meses.


Imaginando-se montada num ginete negro, Jackie recomeça a cavalgada, prendendo o violoncelo entre as pernas. Sua música, sem rédeas, galopa desenfreada arrastando-a e ao público para uma espécie de éden. Eles a desejam, ela sente a onda poderosa que emana deles, o cheiro dos corpos que os preciosos perfumes não conseguem diluir. A boca entreaberta e a respiração ofegante, ela os possui.


Agora que os últimos acordes da sonata em lá maior de Beethoven a dominam, ela reparte, ironicamente compadecida, o seu gozo com eles: eles também chegarão ao clímax, mas, nem de longe conhecerão o que ela conhece. É justo. A recompensa possível para a relação escravizante entre ela e o instrumento do seu prazer.


Não sabe, Jacqueline não sabe que está morrendo e, pior, antes da morte o amante a abandonará, mudo de saudade das suas mãos apaixonadas, do seu toque instintivo, da volúpia da sua alma que apenas ele pode apaziguar.


 


Sandra B.


 


*Esse texto é uma divagação ficcional sobre a maravilhosa celista Jacqueline Dupré. Escrevi após assistir o dvd "Les Introuvables". Jacqueline nasceu em Londres, em 1945; toda sua vida foi marcada pela música e por relações familiares torturantes. Musicista excepcional, a crítica costumava dizer que ela não se apresentava como solista de orquestra alguma, mas a orquestra é que estava ali para acompanhá-la. Aos 23 anos, no auge da sua carreira, Jacqueline foi acometida de esclerose múltipla, doença auto-imune que aliena e destroi o corpo, além de impor dores cuja intensidade pode ser agônica. Jacqueline entrou em coma em outubro de 1987, ao som de sua própria gravação do Concerto para violoncelo de Schumann. Morreu aos 42 anos, transformada numa boneca torta, repetindo à exaustão: " A única coisa que sei fazer é tocar esse maldito instrumento".

sábado, 16 de julho de 2005

A vingança dos objetos (novos cantos)


a cidade

interminável

rua história rio

e nós

desatados navegando

escuros pomares.

 

...

 

a cidade já

não procura nossas

esquinas

páginas virgens

onde

nos escrevemos

beijos

 

...

 

guardou-nos

o retrato

 

(como a cidade

cresceu!)

 

inútil procurar-nos

no enredo das

esquinas

 

as avenidas

orfanadas

de nossa sede

pendem secas

dos nossos olhos

 

 

Sandra B., 2005

 

imagem: "Le baiser" - Klimt. Captado em www.lemondedesarts.com

 

domingo, 10 de julho de 2005

Experiências de aquecer o coração


Quando me perguntam porque parei de lecionar, embora apaixonada pela Educação, eu tenho uma resposta pronta, elaborada para essas situações: parei de dar aulas porque o ambiente escolarizado não é lúdico, não é sensível, não é palatável. O meu limiar de frustração foi atingido e seria improdutivo continuar. Porém, eu não abandonei o meio educacional, já que participo de vários projetos de formação de professores, principalmente do Ensino Fundamental, e todos com foco na mesma questão: o aprendizado da leitura, a desescolarização da literatura, a preservação da memória.


Entretanto, o envolvimento com projetos de educação não-formal são aqueles que têm me dado maior prazer e, segundo me parece, são facilitadores da inclusão social. Um dos trabalhos que, considero, tem rendido muitos frutos, foi realizado junto à população de um  bairro da periferia de Rio Claro, o Cervezão.


No bairro em questão, há muito migrantes nordestinos, e, uma pesquisa mostrou que mais de 60% deles vieram da região de Canindé, no Ceará. Na cidade de Canindé acontece uma das maiores festas religiosas do Ceará: a romaria de São Francisco; geralmente, os migrantes não têm recursos financeiros para viajar e participar das comemorações, ou levar os filhos que aqui nasceram para conhecer o lugar e as tradições respeitadas pela família. Ocorre, também, que muitas dessas famílias são marginalizadas, ou, com muitos sacrifícios, saíram dessa situação de marginalização e observamos nelas o desejo de ocultar das novas gerações, já nascidas no lócus urbano, a memória do processo migratório, muitas vezes dolorosa, porque estigmatizadora.


Assim, as crianças, adolescentes e jovens são privados de sua história familiar, sendo-lhes impossível elaborar o senso de pertencimento à própria família, ao entorno do bairro e, finalmente, compreender-se inserido no fluxo histórico da cidade onde vivem. A escola formal não aceita o desafio da inclusão desses jovens na história local e os processos de discriminação não são discutidos. 


Assim, no Centro de Convivência do Cervezão realizamos um projeto de educação não formal através do qual comunicamos e ensinamos acerca dessas tradições, onde procuramos fazer uma ponte entre as gerações que valorizam antigas tradições e os seus significados e a geração mais jovem. A experiência resultou no Museu de Rua "Canindé fica no Cervezão", coordenado por mim, utilizando belíssimas fotografias feitas pelo Aguiar (ex-sub-prefeito do bairro) que esteve em Canindé para participar da festa e aprender, e textos que escrevi com base em pesquisa e depoimentos dos moradores.


O museu de rua "Canindé fica no Cervezão" ficou exposto nos dias em que se realizou uma festa, nos moldes da festa cearense e, depois, percorreu as escolas da cidade, contando aos alunos um pouco da história do interior do Brasil. Durante a realização da festa, onde foi servida comida típica preparada pelas mulheres do bairro, fizemos uma espécie de sarau só com a declamação de córdeis, os repentistas se apresentaram, os sanfoneiros, etc.


Foi uma experiência de aquecer o coração! A Dona Eulália, de 83 anos, e vivendo em Rio Claro desde 1975, nos abraçava o tempo todo, feliz, parecia uma menina-moça. Observamos uma expressão orgulhosa nos rostos de todas aquelas pessoas, pois tiveram uma oportunidade de reconstruir sua auto-estima, que, claro, influencia positivamente na retomada da voz dessa comunidade, favorecendo uma transformação da realidade local.


Projetos como esse não poderiam ficar à mercê de questões políticas, correndo o risco de não ter continuidade apenas porque outros partidos estão no poder. Mas, infelizmente, isso acontece com frequência, não se levando em conta as prioridades sociais. Portanto, vejo a necessidade dos movimentos sociais investirem cada vez mais maciçamente em projetos de educação não formal, contribuindo para o desenvolvimento humano.


Sandra B.


*imagem: fotografia do estandarte de S. Francisco do Canindé, carregado por moradores do bairro.


 


 

sábado, 9 de julho de 2005

poeta português Lucas Teixeira

Rating:★★★★★
Category:Other
Bem disse o Vinícius que a "vida é a arte do encontro". Tenho encontrado algumas pessoas que se tornaram muito importantes para mim. Uma delas é o poeta português Lucas Teixeira, ser humano fascinante, contador de histórias e exímio construtor de uma arte que quase já não tem mestres: a iluminura.
Lucas, que nasceu Armando, está com 87 anos e vive em Piracicaba/SP. Nasceu no Porto e até os 39 anos foi monge beneditino. Depois, por motivos pessoais deixou o monastério e mudou-se para o Brasil, dedicando-se a traduzir do latim importantes autores clássicos da literatura, como Virgílio e Cícero, produzir suas belíssimas iluminuras que, inclusive, muitas vezes foram expostas na Bienal de São Paulo. E, claro, a escrever poemas através dos quais resgatava a si mesmo, sua pátria, seus amores.
Transcrevo um soneto de "Portugal que não se esquece", publicado em 1965:

LISBOA

Mil poetas te cantaram e eu, agora,
Também te vou tanger a minha lira:
Porque és nobre e fidalga, há quem prefira
Vestir-te de ouro, do esplendor da aurora.

Eu te atavio, onde minha alma chora:
Na noite da Saudade em que ela gira
Entre o pó de altos sonhos de safira,
Que em teu amor me deste e eu joguei fora...

O mar me trouxe e, no Brasil, ao ver-te
Na mesma doce Língua, vou beber-te,
Na salsa onda que beijou teu pé...

O trago é de amargura, pois, Lisboa,
Quando eu te disse adeus, foste tão boa,
Que ficaste a rezar dentro da Sé...

*ofereço o soneto à querida amiga e poeta portuguesa - Soledade Santos.
** na foto, o poeta ladeado por mim e por sua mulher.

Sandra B.



Trilhas Literárias

http://www.plataforma.paraapoesia.nom.br/2005ds.htm#14
Entrevista com o escritor Deonísio da Silva, o Impossível.

sexta-feira, 8 de julho de 2005

O último voo do flamingo

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Mia Couto
Mia e eu: encontros no texto

Surpreendo-me completamente apaixonada por Mia Couto. Mais que isso: estou apaixonadamente surpresa com as janelas que sua prosa poética abre para o leitor. Não me lembro exatamente quem disse que todo grande escritor funda novamente a linguagem, mas, quem o disse falava desse escritor moçambicano. Mia, que se chama Antonio, mas, por se entender gato, na infância, acabou por incorporar o apelido.
Mia Couto é biólogo e professor; já foi militante político, porém, hoje, só luta com palavras, e que palavras! Sua escrita volátil revela uma verdadeira reverência para com a linguagem, um respeito ímpar pelos dialetos e pela comunicação inventada por suas personagens.
O primeiro contato com sua obra foi através de “A varanda do Frangipani” (1999), texto delicioso, uma escrita plena de voz, de intensa oralidade, que, sem a pretensão de fazê-lo, resgata poeticamente as tradições orais africanas. Desse livro, carrego comigo a forte impressão dessas palavras: “Hoje eu sei: África rouba-nos o ser. E nos vaza de maneira inversa: enchendo-nos de alma.”
Depois de “A varanda do Frangipani”, li “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra” (2003) – e conheci Juca Sabão, personagem inesquecível que me sussurrou, nas horas silenciosas de leitura, verdades profundas, perfeitamente inseridas no contexto de uma história fantástica. Pela boca de Juca, ouvi que “Encheram a terra de fronteiras., carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações – a dos vivos e a dos mortos.”
Finalmente, cheguei ao que considero o mais expressivo de seus livros: “O último voo* do flamingo”. Nesse texto, mais do que nunca Mia Couto explora a linguagem até as últimas conseqüências. Em alguns momentos, lembrou-me Guimarães Rosa, por exemplo, com a criação do verbo sozinhar-se; e a poesia, ah, a poesia permeando a prosa, fluida e sensitiva: “Em fins de tarde, os flamingos cruzavam o céu. Minha mãe ficava calada, contemplando o vôo.(...) Tudo, nesse momento, era sagrado.(...) Para ela, os flamingos, eram eles que empurravam o sol para que o dia chegasse ao outro lado do mundo.”
“O último vôo...” respira memória e imaginação, mescladas numa linguagem alquímica. É como se o escritor estivesse revisitando lugares seus conhecidos, levando as personagens a percorrerem caminhos dantes trilhados por ele mesmo, a beberem nas fontes da sua própria experiência. E ao leitor só resta o pasmo: que mundos, que homens, não se constroem com palavras!
Mia criou um texto transbordante de corpo, clivado de memórias e através do qual o leitor mesmo se reinventa. Talvez, essa fascinação de que estou vítima por obra de “O último vôo...” se relacione com o fato de que o sentido do tempo tem uma importância fundamental no texto, o Tempo surge quase como uma personagem que domina a cena, enquanto também possui os corpos das outras personagens, e, claro, o nosso: “O corpo é feito de tempo. Acabado o tempo que nos é devido, termina também o corpo.”
Que haja tempo para se ler Mia.

Sandra B.

*voo está grafado sem acento, no original.