Cega
reconheço pelo
tato os
contornos e
texturas
da linguagem.
Compreendo:
já não me leio
nas letras que
me definem.
Sandra B.
*imagem: La curiosite, Reina de Cordieus, 1999.
Cega
reconheço pelo
tato os
contornos e
texturas
da linguagem.
Compreendo:
já não me leio
nas letras que
me definem.
Sandra B.
*imagem: La curiosite, Reina de Cordieus, 1999.
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Books |
Genre: | Literature & Fiction |
Author: | Pedro Garcia* |
Ele me olha e avisa que vai me pintar. Os olhos, febris, analisam os meus ossos. Eu anuncio que minha carne se lê com as mãos, e sorrio. Penso em Egon, que ele, claro, não conhece. Morrerá aos vinte e oito anos?
Quero lhe falar sobre Schiele, e me cubro, já assumindo ares didáticos. Desnuda! Ele me ordena, e se assusta. Desnuda? Seja. Emudeço.
Ele abre as janelas e ajoelha-se ao lado da cama, misturando cores. As mãos, tintas de azuis e vermelhos, se mudam para o meu corpo. Na tela de nácar se nomeia o meu silêncio: caminhos-dentro que não percorri.
Suas mãos nomearão o que se abriga em minhas entranhas? Meu corpo tocado tocante tocata vai se cumprindo a cada pincelada desferida por seus dedos. Egon, eu te batizo. Ele me enterra as unhas nas coxas.
Foi assim que eu descobri que ele me possuía. A mim, que desejei metabolizá-lo como a coisa viva que era; fazê-lo meu semelhante, coisa de carne e sangue da qual eu podia me apropriar. Ah, que longa a jornada antes desse lúcido momento! De repente percebo que, sim, estará morto aos vinte e oito anos.
Sandra B.
*divagação ficcional em torno do artista Egon Schiele, um dos mais inquietantes expressionistas.
* imagem: "Embrace Lovers"
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Movies |
Genre: | Drama |
Aplausos. A intensidade deles a inebria, sempre. Não é nada parecido com o que sente quando está a sós com ele, claro, mas, também fazem com que o coração dispare. A sensação mais parecida com aquela que a domina quando está com ele, trancada, ela experimenta ao ouvir suas próprias gravações. Nesses momentos, ela esquece o cansaço extremo e a debilidade que a tem perseguido nos últimos meses.
Imaginando-se montada num ginete negro, Jackie recomeça a cavalgada, prendendo o violoncelo entre as pernas. Sua música, sem rédeas, galopa desenfreada arrastando-a e ao público para uma espécie de éden. Eles a desejam, ela sente a onda poderosa que emana deles, o cheiro dos corpos que os preciosos perfumes não conseguem diluir. A boca entreaberta e a respiração ofegante, ela os possui.
Agora que os últimos acordes da sonata em lá maior de Beethoven a dominam, ela reparte, ironicamente compadecida, o seu gozo com eles: eles também chegarão ao clímax, mas, nem de longe conhecerão o que ela conhece. É justo. A recompensa possível para a relação escravizante entre ela e o instrumento do seu prazer.
Não sabe, Jacqueline não sabe que está morrendo e, pior, antes da morte o amante a abandonará, mudo de saudade das suas mãos apaixonadas, do seu toque instintivo, da volúpia da sua alma que apenas ele pode apaziguar.
Sandra B.
*Esse texto é uma divagação ficcional sobre a maravilhosa celista Jacqueline Dupré. Escrevi após assistir o dvd "Les Introuvables". Jacqueline nasceu em Londres, em 1945; toda sua vida foi marcada pela música e por relações familiares torturantes. Musicista excepcional, a crítica costumava dizer que ela não se apresentava como solista de orquestra alguma, mas a orquestra é que estava ali para acompanhá-la. Aos 23 anos, no auge da sua carreira, Jacqueline foi acometida de esclerose múltipla, doença auto-imune que aliena e destroi o corpo, além de impor dores cuja intensidade pode ser agônica. Jacqueline entrou em coma em outubro de 1987, ao som de sua própria gravação do Concerto para violoncelo de Schumann. Morreu aos 42 anos, transformada numa boneca torta, repetindo à exaustão: " A única coisa que sei fazer é tocar esse maldito instrumento".
a cidade
interminável
rua história rio
e nós
desatados navegando
escuros pomares.
...
a cidade já
não procura nossas
esquinas
páginas virgens
onde
nos escrevemos
beijos
...
guardou-nos
o retrato
(como a cidade
cresceu!)
inútil procurar-nos
no enredo das
esquinas
as avenidas
orfanadas
de nossa sede
pendem secas
dos nossos olhos
Quando me perguntam porque parei de lecionar, embora apaixonada pela Educação, eu tenho uma resposta pronta, elaborada para essas situações: parei de dar aulas porque o ambiente escolarizado não é lúdico, não é sensível, não é palatável. O meu limiar de frustração foi atingido e seria improdutivo continuar. Porém, eu não abandonei o meio educacional, já que participo de vários projetos de formação de professores, principalmente do Ensino Fundamental, e todos com foco na mesma questão: o aprendizado da leitura, a desescolarização da literatura, a preservação da memória.
Entretanto, o envolvimento com projetos de educação não-formal são aqueles que têm me dado maior prazer e, segundo me parece, são facilitadores da inclusão social. Um dos trabalhos que, considero, tem rendido muitos frutos, foi realizado junto à população de um bairro da periferia de Rio Claro, o Cervezão.
No bairro em questão, há muito migrantes nordestinos, e, uma pesquisa mostrou que mais de 60% deles vieram da região de Canindé, no Ceará. Na cidade de Canindé acontece uma das maiores festas religiosas do Ceará: a romaria de São Francisco; geralmente, os migrantes não têm recursos financeiros para viajar e participar das comemorações, ou levar os filhos que aqui nasceram para conhecer o lugar e as tradições respeitadas pela família. Ocorre, também, que muitas dessas famílias são marginalizadas, ou, com muitos sacrifícios, saíram dessa situação de marginalização e observamos nelas o desejo de ocultar das novas gerações, já nascidas no lócus urbano, a memória do processo migratório, muitas vezes dolorosa, porque estigmatizadora.
Assim, as crianças, adolescentes e jovens são privados de sua história familiar, sendo-lhes impossível elaborar o senso de pertencimento à própria família, ao entorno do bairro e, finalmente, compreender-se inserido no fluxo histórico da cidade onde vivem. A escola formal não aceita o desafio da inclusão desses jovens na história local e os processos de discriminação não são discutidos.
Assim, no Centro de Convivência do Cervezão realizamos um projeto de educação não formal através do qual comunicamos e ensinamos acerca dessas tradições, onde procuramos fazer uma ponte entre as gerações que valorizam antigas tradições e os seus significados e a geração mais jovem. A experiência resultou no Museu de Rua "Canindé fica no Cervezão", coordenado por mim, utilizando belíssimas fotografias feitas pelo Aguiar (ex-sub-prefeito do bairro) que esteve em Canindé para participar da festa e aprender, e textos que escrevi com base em pesquisa e depoimentos dos moradores.
O museu de rua "Canindé fica no Cervezão" ficou exposto nos dias em que se realizou uma festa, nos moldes da festa cearense e, depois, percorreu as escolas da cidade, contando aos alunos um pouco da história do interior do Brasil. Durante a realização da festa, onde foi servida comida típica preparada pelas mulheres do bairro, fizemos uma espécie de sarau só com a declamação de córdeis, os repentistas se apresentaram, os sanfoneiros, etc.
Foi uma experiência de aquecer o coração! A Dona Eulália, de 83 anos, e vivendo em Rio Claro desde 1975, nos abraçava o tempo todo, feliz, parecia uma menina-moça. Observamos uma expressão orgulhosa nos rostos de todas aquelas pessoas, pois tiveram uma oportunidade de reconstruir sua auto-estima, que, claro, influencia positivamente na retomada da voz dessa comunidade, favorecendo uma transformação da realidade local.
Projetos como esse não poderiam ficar à mercê de questões políticas, correndo o risco de não ter continuidade apenas porque outros partidos estão no poder. Mas, infelizmente, isso acontece com frequência, não se levando em conta as prioridades sociais. Portanto, vejo a necessidade dos movimentos sociais investirem cada vez mais maciçamente em projetos de educação não formal, contribuindo para o desenvolvimento humano.
Sandra B.
*imagem: fotografia do estandarte de S. Francisco do Canindé, carregado por moradores do bairro.
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Other |
Rating: | ★★★★★ |
Category: | Books |
Genre: | Literature & Fiction |
Author: | Mia Couto |