quarta-feira, 30 de março de 2005

desencontrados ventos

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Adair Carvalhais Jr.
O livro de poemas, levei-o comigo nas férias, atendendo o pedido do verso: “esperarei que te/ dispas/ das pressas do mundo” e não há dúvida que a poesia de Adair Carvalhais Jr. merece o mergulho calmo e profundo do leitor. Uma poética sensorial e plena de uma sensualidade que vai se desvendando nas entrelinhas, nas imagens táteis que o poeta cria e que nos penetram pelos ouvidos, olhos, pelos poros. Há angústias e a nítida cumplicidade com a angústia maior da escrita; há beleza, desejo e saudade, ainda que o poeta a renegue: “a saudade é tão inútil”.
Pergunto-me o que mais me cativou na poesia de Adair. Não há respostas fáceis para essa questão. Talvez, primeiramente, por oferecer a ilusão de que o poema “nasceu pronto”, fato que a leitura mais atenta logo desmente: a poética de Adair é habilmente burilada, poética-processo onde texto e autor vão se amalgamando e, dessa “massa” revelam-se as palavras feitas de carne, a carne do poeta: “meu corpo bate/ e volta contra as arestas do/ dia escurece e viver me/ devolve apenas restos/ gastos boiando em meus/ olhos.” Por emprestar-se ao poema, Adair constata: “não me encontro por/ inteiro partes/ desencontradas” ou: “quem é você afinal que/ me rouba assim/ de mim eu/ sei você sabe o resto/ fica/ com o universo”
Esse eu-poético fragmentado, inteiro em partes, faz incisões precisas nas palavras, nos versos, mergulhando o leitor nos abismos líquidos da sua poesia: “à noite dorme/ na liquidez do meu/ olhar os peixes/ pálidos/ de solidão” Assim, chegamos ao outro motivo pelo qual me deixei enredar: a poesia de Adair é plena de correntezas: “mergulhei nas/ correntezas de seu/ desejo esta/ noite”; mares de dentro: “minhas ondas vão/ e vêm”; lágrimas: “mas queria algo tão eterno/ quanto as lágrimas que emanam/ dos meus olhos e se evaporam/ nas minhas mãos”. Os versos criam cenários líquidos lançando mão de suores, poços e chuvas, de tal forma que, na poesia de Adair até a poeira ganha o dom de inundar: “dá-me bom/ dia a poeira/.../ exausto de limpá-la deixo-a/ inundar meus cantos/.../arrastar-me/ enfim”
A qualidade líquida, e, portanto envolvente, da poesia de Adair, se revela ainda na ausência de pontuação; a maioria dos poemas se entrega a todas as possibilidades: não aceita os limites impostos pelos pontos finais, não quer a pausa das vírgulas, não interroga, não pasma, apenas, delicadamente constata: “mas eu te quis como/ o peixe busca redes” A delicadeza surge no emprego inteligente das minúsculas, que, aliado ao uso parcimonioso da pontuação, reforça a metáfora das palavras flutuantes.
Em “desencontrados ventos” relemos nossa mais palpável solidão. Não sei, não sei, mas haverá solidão mais concreta do que a cantada nesses versos? “Houve um tempo/ em que minha única companhia/ era o silêncio do mato/ crescendo/ no lote vago.” Uma solidão que possui o poeta e que ele possui, ciumentamente: “minha dor posso/ dividir minhas lágrimas derramar/ nas suas mãos mas esta/ solidão é toda/ minha”. A solidão é “toda” traduzida na ânsia de vivenciá-la, mais do que descrevê-la, na permissão para que ela o “arrombe de vertigens”, levando-o à catarse final - o verso: “enlouquecido por tua/ ausência solto aos ventos/ intempestivos sou carne pura aos pés/ da noite”
Não posso definir o que me cativou na poesia de Adair carvalhais Jr. além do poder de cinzelar a palavra-prima - a pedra, e esculpir nela o que lá já estava, mas, ninguém mais viu.

Sandra R. S. Baldessin

desencontrados ventos (2002). Editora Outras Letras

sábado, 26 de março de 2005

Desfeitos um para o outro*


Escreverei versos quando você partir. Lembro que perguntou-me se algum dia minha boca se arrependerá dos beijos com que nos devoramos. Não respondi. Você não pergunta para obter respostas e eu sempre respondo, muda, tudo o que você teme indagar.


Hoje as palavras não me interessam. Vê se cala essa boca e usa a língua como chave. É assim que se constrói um amor verdadeiro: com Astor Piazzola como fundo musical e gestos bailarinos se desprendendo dos corpos entrelaçados.


Talvez eu queime incenso, pode ser que eu dance; quem sabe, enfeitarei os cabelos com uma rosa vermelha, enterrando os seus espinhos na fronte. Certamente escreverei versos quando você partir.


Hoje, não. Sente-se aqui. Façamos o inventário da nossa história. Eu contabilizo os contras. Você, com esses olhos cheios de adeus, vai tentar me convencer que estou errada. E não venha me dizer que os nossos signos combinam, que gostamos e desgostamos das mesmas coisas, que eu nunca perco a classe, mesmo bêbada. Também não resolve ficar me acariciando as coxas enquanto fala.


Não diga que com você eu poderia enfrentar o destino com dinheiro no bolso. Prefiro contrair outros tipos de dúvidas. Não me ofereça a proteção da casa própria, nem me garanta descendentes saudáveis, espécimes pós-modernos aptos a  sobreviverem em nosso paraíso individualista.


Seja desleal e acrescente à sua lista de prós as lembranças da infância. O tempo em que empinávamos pipas, lado a lado, no mesmo campinho. Havia resgate para os nossos sonhos naquele azul todo se alastrando pelos nossos olhares. A felicidade sem ideologia de quando temos dez anos e ainda não visitamos as regiões do desejo. O tempo em que nunca ouvíramos falar em Marx, Baudelaire, Simone Weil e a nossa dor não aparecia nas fotografias.


 Não tenta colocar na balança essa entidade que criamos quando amalgamados além das palavras, esse estranho que se molda a partir da metamorfose dos nossos corpos. Esse animal, herdeiro da nossa luxúria, costurado às nossas peles, tecido de rendas líquidas.


Sobretudo, se esforce para não demonstrar o quanto você acredita que me ama; eu nego a você o prazer de me salvar da solidão. Evite despir-me procurando aquela menina que colecionava pedras, a mesma que se escreveu no seu corpo, tornando-o  guardião do selo de carne das tantas mulheres partejadas pós-você.


Desfeitos um para o outro, recuso-me a enumerar razões para dizer-lhe que se incorpore à chuva e saia pela janela. Tenho todas as incertezas que preciso para viver. Escreverei versos quando você partir.


 


Sandra R. S. Baldessin


 


*fragmento da novela "Cúmplices da flor", inédita.


Imagem: gif de Lady Utopia.


 


 

Ladainha de um fundo de mar

http://elpoeta.multiply.com
O belo poema de Eliana Mora é para ser lido e guardado nas entranhas.

sexta-feira, 25 de março de 2005

Pés em Paz

Rating:★★★★★
Category:Other
Dentre as tantas coisas deliciosas que vi, bebi, comi, toquei e me deixei tocar nessa viagem, uma foi muito especial.
Na estrada, no meio do nada, na Br 101, lá nos confins de Santa Catarina, eu vi uma placa anunciando o "Pés em Paz" , supostamente um spa dos pés. Depois de vencer a resistência do maridão que, com toda sobriedade, tentou me convencer que eu acabaria caindo numa "casa de tolerância", nós fomos atrás do tal endereço. Uma casa simples de madeira onde um oriental de meia idade oferece a um custo irrisório uma deliciosa sessão de massagem. Hum, tiradas as sandálias, mergulhei os pés num banho de flores de camomila, em seguida, fui incentivada a pisar numas pedrinhas moídas, aquecidas. Depois, os pés foram conhecer o gosto de uma espécie de barro cheirando a sândalo. Mais banho de camomila e, no final, uma massagem com óleos aromáticos misturado com óleo de sucuri, segundo o oriental, cujas mãos são um mistério, de tão... tão... Bem, meus pés ainda não descobriram a palavra que defina a sensação do toque dessas mãos.

PS. eu sugeri a ele uma franquia (rsrs)



linguágil - inspirado em Manoel de Barros

Não essa língua

que desarticula

a ternura,

que violenta

a sintaxe

materna;

anti-língua

científica

que não (se) diz

o mito.

 

Antes

uma língua de

beijar-lamber

suposição

do corpo,

abraço e cilada:

ágil

linguagem.

 

 

Sandra R. S. Baldessin

 


 

Éden


 
 

Quando nos

entendemos

nus

 

(Quem vos contou que

 estáveis nus?)

 

desvendamos

tanatos em

nossos membros

e um novo éden
interpele.

 
Sandra R.S. Baldessin
 
 

imagem: "El abrazo" pintura da artista argentina Gaby Jaime.

anti-presença



É melhor que não venhas.
Melhor ainda se nunca
tivesses vindo.
 
Porque, chegado,
já houveras partido
sem nunca teres estado.
 
É melhor que não venhas.
Melhor ainda se não intentaras
vir. Desvindo.
 
Porque, estando,
já te fizestes ausente
ainda que presentificado.
 
Não, é melhor que não venhas.
Melhor ainda que te vás agora,
antes mesmo de chegares.
 
Porque, chegante,
já me partes. Ido
sem pressa, antes da súplica:
 
é melhor que não venhas.
 
 
Sandra R.S. Baldessin, fev.2005.
 
imagem: "colores de ausência larga"; disponível em www.ocefernandez.com.ar/ Galer%EDa.htm
 
 
 
 

sharon*


Sharon. Ô nome horrível, ou, talvez, eu que sou uma mulher horrível. A verdade é que esse sharon nunca que entrou em mim. Sabe roupa apertada, da marca cavalo dado não se olha os dentes? Pois é disso que tô falando.


O pai que me nomeou sumiu pouco antes d’eu completar cinco anos. Minhas duas irmãs mais velhas, sortudas, se chamam Elza e Selma, nomeadas pela nossa mãe. Eu não: carrego o nome de uma visão por quem o pai se apaixonou, uma tal sharon estóne. Já vi retrato dela nas revistas velhas qu’ele deixou pra trás quando partiu, seguindo uma mulher feita de carne, diferente daquela sharon de papel, diferente da mãe, feita só de trabalho e dor.


A sharon de papel era só o anúncio da insatisfação dele, e agora fico eu com esse nome que sugere mulher fina e perfumosa. Eu, Sharon, a gari que mal sabe assinar o nome, ô sina! E vê lá se mulher chamada sharon anda por aí co’as unhas roídas e esse cabelo ruim qu’eu puxei adivinha de quem? 


Queria trocar de nome, pois se nem brasileira, artista de novela, a tal sharon é; é gringa. Se era pra me dar nome de loira boazuda que ilustra capa de revista por que não botou logo véra ficher?  Pelo menos servia pro Cesinha, que foi meu primeiro namorado, escrever o nome certo no coração que desenhou na carteira da escola: Cesinha e Xaron... ô sina. A professora castigou mais por causa da ortografia do que por ter estragado o patrimônio do governo estadual. Se era pra ter nome de loira artista, por que não xuxa, que pelo menos se escreve com x? Assim não perdia o namorado.


Lá no cartório disseram que não pode não, trocar o nome. Pois o moço não disse que sharon é nome bonito? Que a mulher dele tá grávida e se for menina a pobre vai chamar sharon também?  Pelo menos bota com x, eu já fui logo aconselhando.


Meu sonho era ter nome de lúcia, coisa mais linda de nome. Ah, que se eu me chamasse lúcia nem me importava com essa vida miserável que a gente leva, com essa falta de tudo, com essa falta de vida na vida, que faz a gente ir existindo, existindo, até o dia que faz o contrário e acaba desistindo. lúcia representa luz e quem sabe com um nome desse, que só da gente dizer ilumina, eu faria a mãe ser o que o nome dela diz: Dona Felicidade.


Eu só tenho um único consolo: pelo menos não há de aparecer no meu túmulo, vê lá se gente como nós manda gravar placa pra enfeitar sepultura!


 


* Coletânea "Capitus?" , inédita. Registrada na Biblioteca Nacional.  


 


Imagem: disponível em www.http://web.ukonline.co.uk/sharon-stone/scanss/stone/sharon.jpg


 


 

Poema de Konstantinos Kavafis

Rating:★★★★★
Category:Other
Esse poema de Kavafis, o poeta que disse que a arte mente sempre e quanto mais mente, mais nos diz a verdade, é um dos meus preferidos. Estou sempre viajando na direção dessa Ítaca interior, quem quiser seguir comigo...

Kavafis nasceu em Alexandria em 1863; a sensibilidade de sua poética garante a ele uma posição irrevogável na tradição literária. Em Kavafis, aprecio o rigor estético, a valorização do helenismo e a cadência do seu versejar, que me sugere uma dança executada no pico de uma montanha muito alta, geograficamente localizada no íntimo do poeta.

Foto: Ítaca; imagem dispoinível em: www.itaca-europe.org


Ítaca (1911)

Quando empreenderes tua viagem para Ítaca
pede que o caminho seja longo,
cheio de aventuras, cheio de experiências.
Não temas os lestrigões nem os ciclopes
nem o colérico Posseídon, pois
jamais encontrarás tais seres em teu caminho,
se teu pensamento é elevado, se seleta
é a emoção que toca teu espírito e teu corpo.
Nem os lestrigões nem os ciclopes
nem o selvagem Posseídon encontrarás,
se não os levares dentro de tua alma,
se tua alma não os ergue diante de ti.

Pede que o caminho seja longo.
Que sejam muitas as manhãs de verão
em que chegares - com que prazer e alegria -
a portos antes nunca vistos.

Detém-te nos empórios da Fenícia
e compra formosas mercadorias,
nácar e coral, âmbar e ébano
e todo tipo de perfumes voluptuosos,
quanto mais perfumes voluptuosos puderes.
Vai a muitas cidades egípcias
para aprender e aprender com seus sábios.

Tem sempre Ítaca em teu pensamento.
Tua chegada lá é teu destino.
Mas nunca apresses a viagem.
Melhor que dure muitos anos
e que atraques, já velho, na ilha,
enriquecido com tudo o que ganhaste no caminho
sem esperar que Ítaca te enriqueça.

Ítaca te brindou tão formosa viagem.
Sem ela não terias empreendido o caminho.
Mas agora nada mais tem a dar-te.

Embora a aches pobre, Ítaca não te enganou.
Assim, sábio como te tornaste, com tanta experiência
já entenderás o que significam as Ítacas.



domingo, 6 de março de 2005

A erótica textual


É preciso apropriar-se do texto, ludibriar o autor que tenta nos conduzir pelo seu caminho, e, com esse ato, libertar o texto da origem autoral. É preciso desnudar o texto e estar nu diante dele. Iluminá-lo com nosso olhar e deixar-nos penetrar pela luz que lhe emprestamos. É preciso violar o texto, deformá-lo, na agonia de ressignificá-lo. O contrário disso é o tédio: a destruição do desejo de leitura.
O texto anseia pelo toque do leitor ousado, o único que pode legitimá-lo, autorizar a sua existência. Eu-leitor assedio o texto com a única finalidade de me deixar seduzir por ele no jogo lúdico das entrelinhas, do vir-a-dizer. É preciso emprestar o próprio corpo ao texto, o verbo se fazendo carne – a minha, ad infinitum.
Como disse Marguerite Duras pela boca de um de seus mais instigantes personagens: “Assim, compreendera que a leitura era uma espécie de contínuo desenrolar, dentro de seu próprio corpo, de uma história inventada por ele.”
Há coisas que só a leitura literária nos dá; quem não se entrega a esse prazer, sequer entende que precisa daquilo que não sabe que existe.

Metáfora*

Quando me abordas
disfarçada de gramática,
és toda virgem:
substantivo, verbo ou pronome,
és pura ortografia
sem malícia.
Abraço-te
e sob o fogo
da paixão superlativa
dessas mãos,
ficas desnuda -
já não tens
conceituação.
És Palavra, simplesmente,
adorada cortesã
de todos os poetas.

Sandra R. S. Baldessin


*do livro À Flor do Verso, 2001.
imagem: fotografia dos livros que estou lendo e relendo.



sábado, 5 de março de 2005

MAX MARTINS - poeta paraense

Rating:★★★★★
Category:Other
Ofereço a vocês um dos meus poemas preferidos de Max Martins



A FERA

Das cavernas do sono das palavras, dentre
os lábios confortáveis de um poema lido
e já sabido
voltas
para ela - para a terra
maleável e amante. Dela
de novo te aproximas
e de novo a enlaças firme sobre o lago
do diálogo, moldas
novo destino
Firme penetra e cresce a aproximação conjunta
E ocupa um centro: A morte, a fera
da vida
te lambendo


Sabemos muito pouco sobre os nossos poetas! Esse poeta paraense é dos mais instigantes, vale a leitura, vale a reflexão. Olhem a biografia, dispoinível em: www.culturapara.com.br

Max Martins nasceu em Belém do Pará em 1926. Exerceu cargos públicos até o momento de sua aposentadoria, a qual o Inamps incorporou outra: a de escritor, obtida há alguns anos e transformada, de imediato, no primeiro caso de escritor que se aposenta e recebe benefícios por ter exercido, por mais de trinta anos, a poesia. Hoje é diretor de um núcleo de cursos na área de linguagem verbal, aberto a estudantes de nível médio, universitários e interessados na literatura de um modo geral, conhecido como Casa da Linguagem.

Lançou seu primeiro livro, O Estranho, em 1952 (edição do autor). Desta edição muitos exemplares se perderam, pois o resultado da impressão, muito precária, àquela época, não tendo agradado ao poeta, deveria ter sido jogada fora, a seu pedido. Porém o garoto encarregado da tarefa, penalizado, deixou alguns exemplares nas soleiras dos casarões por onde passara a caminho do incinerador público, contrariando assim a ordem expressa do poeta. Graças a esse fato, O Estranho conheceu uma repercussão a posteriori, por ocasião das doações de acervo das grandes famílias de Belém a bibliotecas de universidades e instituições.

O Estranho refletia a percepção, mesmo que tardia, do modernismo, principalmente da musicalidade de Cecília Meireles, e do coloquialismo estilizado de Carlos Drummond de Andrade em Alguma Poesia, bem como do livro O Homem e sua Hora, de Mário Faustino ("O pão dos sábados/E as aventuras de Mário e Juvenal/Já não te comoverão/Na tristíssima volta ao lar paterno").

Em Anti-retrato (1960), nota-se a evolução para o trato com temas que se tornariam recorrentes em seus poemas - evolução essa impulsionada, de resto, pela aproximação entre as formas de construção da prosa e da poesia postulada por Faustino em seus estudos sobre poética. ("Já é tudo pedra/os dias, os desenganos./Rios secaram neste rosto, casca/de barro, areia causticante").

Este projeto de escrita vai se aperfeiçoar uma década depois em H'Era (1971) com, entre outros fatos, a declaração expressa em seus poemas da preferência por autores nacionais como Drummond, Jorge de Lima e Guimarães Rosa, e por estrangeiros como Dylan Thomas, William Alden e Henry Miller. ("Palavras famintas pedem bis, e o X/de Hamlet e Henry Miller me visava;/velhas rezavam, se revezavam/em cantos, panos, palinódias").

Em O Risco Subscrito (1976), os poemas de Max Martins ganham um tom mais universalizante, ¡á anunciado no livro anterior. Aqui, a preocupação com a linguagem se torna o próprio assunto do poema; o ritmo bem marcado delimita agora uma nova relação formal com o espaço em branco da página. 0 que Benedito Nunes, na apresentação da obra, chama de "ensaio de espacialismo", principalmente em O Ovo filosófico:


"o olho
do ovo
----------
o ovo
do olho".

Em Caminho de Marahu (1983), a opção pelos temas eróticos transforma-se em um objeto de pesquisa e crítica pata o poeta. A influência de João Cabral e dos movimentos de vanguarda, como a poesia concreta e o poemaprocesso, redunda em um certo estranhamento da linguagem dos textos, que associam a natureza da pesquisa de linguagem à natureza do desejo sexual: "O branco apaga tudo - as cores deste gozo/E o próprio gozo/neste poço/ cala/o som da água".

Para Edilberto Coutinho (O Globo,l 9/fev./1984), "Max Martins se revela, neste Caminho de Marahu, além de poeta, um pesquisador e crítico, na linguagem de Décio Pignatari e dos irmãos Campos, (...) com seus parâmetros mais remotos (dentro da modernidade) em Mallarmé - por exemplo - ou, mais recentemente e de forma mais ostensiva, em Ezra Pound".

Um livro-folder, ou um livro-pôster, assim era 60/35 em sua primeira edição, em 1986. Os dezoito poemas que o compõem parecem confirmar as imagens utilizadas em seus livros anteriores. Como diz o verso de Edmond Jabès, que serve de mote para o autor, "tu és aquele que escreve e que é escrito". Nestes poemas percebem-se decisões quase sólidas na construção dos versos ("Escrevo duro/escrevo escuro'). Característica que constitui sua diferença quando comparados a Marahu, onde, ao mesmo tempo que retorna a temas e imagens anteriores, parece cair em um pessimismo absoluto da linguagem ("Ponho na tua boca as cinzas/da minha insígnia"). Marahu encerra, cronologicamente, a lista dos livros reunidos em Não Para Consolar (1992).


Olha só quem está apitando!*


Está se aproximando o dia 8 de março, data em que comemoramos o Dia Internacional da Mulher. O simbolismo dessa comemoração continua sendo muito necessário: em nossa sociedade ainda prevalecem muitas formas de discriminação contra a mulher, isso tornou-se bastante claro essa semana.
Não sou nenhuma especialista em matéria de futebol, mas, ficou nítida a postura, no mínimo desagradável, que assumiram aqueles que criticaram a atuação da árbitra de futebol Sílvia Regina de Oliveira, que apitou o clássico São Paulo e Corinthians, domingo no Morumbi. Teve treinador com a cara de pau suficiente para dizer que as mulheres não tem a mesma capacidade física que os árbitros homens.
A competência da árbitra poderia ser questionada sob muitos outros aspectos, e não necessariamente através dessa conotação; o fato é que o preparo profissional de Sílvia Regina é inquestionável: ela atua na arbitragem, desde 1980 e foi escolhida para representar o Brasil no 1º. Workshop de Arbitragem de Futebol Feminino, que se realizará entre os dias 7 e 15 de março, em Portugal.
Entretanto, os que insistiram que uma mulher não tem condicionamento físico para correr e acompanhar as jogadas dos craques de perto não puderam sustentar seus argumentos: os árbitros são monitorados via satélite e, assim, ficou comprovado que Sílvia mostrou o mesmo desempenho que árbitros do sexo masculino.
O que podemos deduzir? Que, infelizmente, ainda existem muitas áreas onde preferem que as mulheres “não apitem”. Que ainda subsiste, mesmo enfraquecido, o conceito de sexo frágil, segundo o qual as inegáveis diferenças biológicas entre homens e mulheres influenciariam as habilidades e capacidades físicas e intelectuais dos mesmos.
Durante séculos, uma falsa imagem da mulher como ser instável e débil predominou na sociedade, impondo limites à atuação feminina e à sua presença na cena pública. Nunca é demais recordar que, às duras penas, conquistamos nosso espaço nas ciências, na política, na medicina, na filosofia, áreas nas quais a intervenção feminina sempre foi muito restrita.
Hoje, as mulheres têm se destacado na área científica e, embora apenas 10% dos quadros da Academia Brasileira de Ciências seja composto por elas, somente mulheres foram contempladas com o prêmio Jovem Cientista 2004, o que dá uma dica sobre o futuro feminino da ciência brasileira.
O dia 8 de março é uma data simbólica da luta da mulher pela emancipação, pelo reconhecimento e contra a discriminação. Um bom dia para lembrarmos que mulher apita sim, inclusive dentro dos campos de futebol!

Sandra R. S. Baldessin


*Publicado originalmente no Jornal Cidade de Rio Claro. 04/03/05
Imagem: Sílvia Regina de Oliveira. Disponível em: http://www.sfcup.com/images/symposium_04_sylvia.jpg