domingo, 30 de outubro de 2005

Toda poesia que se há de pescar no Passa-cinco



O rio sempre me foi janela. Meu avô pescava e eu, debruçada sobre as pedras, pescava estórias, na imaginação. Houve um rio e uma menina que o amava e foi vivida por ele. A água fria, o tempo frio, e o avô que se entendia melhor com os peixes do que com a família. O corpo d’água do rio misturado às minhas águas, às vezes claras, às vezes sangue,


Esse rio continua fluindo em tudo que escrevo...


 


o corpo d’água


das minhas águas


delta fecundo


fluindo para o


amar.


 


Sandra B.


* foto: uma das cachoeiras do Passa-cinco

sábado, 29 de outubro de 2005

Dia Nacional do Livro

Rating:★★★★★
Category:Other
Hoje é o Dia Nacional do Livro. Uma data que deveria ser comemorada de forma abrangente, envolvendo profissionais de todas as áreas. Sim, pois os livros são ferramentas de disseminação do conhecimento sob suas mais variadas formas.
Se a escritura surge como um meio de transmissão da informação, a leitura se configura como a mediadora da aquisição dessa mesma informação, do conhecimento. Nesse caso, a leitura é um ato social, e, como tal, é uma questão pública das mais importantes.
Falar em livros é falar em leitura e leitores. Quando pensamos na origem da palavra ler, temos, no grego, a expressão legei, significando colher, recolher, juntar; a palavra em latim foi grafada como lego, legis, legere, cujo sentido exprime a plenitude da leitura: juntar as coisas com o olhar. Nada mais verdadeiro!
Gostaria que hoje, no Dia Nacional do Livro, tivéssemos motivos para celebração, mas, o que não nos faltam são motivos para reflexão. No Brasil há pelo menos 35 milhões de analfabetos funcionais, pessoas para as quais o livro não faz sentido; há, ainda, muitos outros que não tem acesso ao livro, à informação escrita, conforme pode ser observado pela distribuição regional das bibliotecas públicas no país: 21% na região sul; 10% na região centro-oeste; 39% na região sudeste; e 30% na região norte e nordeste. Bibliotecas públicas conectadas à internet só aparecem nas regiões Sul e Sudeste. Dentre essas bibliotecas, é preciso ressaltar, a grande maioria não tem o acervo atualizado, sobrevivem em condições precárias, mantidas por orçamentos ridículos. Fazendo as contas, no Brasil há apenas uma biblioteca deficiente para cada 36.000 brasileiros!
Particularmente, já não acredito que haja interesse do governo em reverter essa situação; relembro as campanhas que vêm sendo realizadas, desde o governo Fernando Henrique até a atual Fome de Livro (com a pretensão de implantar um milhão de bibliotecas públicas até 2006) e observo que, efetivamente, nada mudou.
Teimo em ter esperança. Formar leitores é uma espécie de discipulado. Quem sabe, se cada leitor apaixonado chamasse a si a tarefa de motivar e formar outro leitor através da sua própria vivência em leitura não obtivéssemos bons resultados? É um trabalho de formiguinhas, mas, pode se revelar mais eficaz do que as campanhas de massa.
O livro é um objeto social, portanto, tem função ideológica, mas, essa função só se cumpre quando ocorre a interação livro/público, à parte disso, já não faz sentido. Termino recordando Castro Alves e seu belo poema O Livro e a América:

“Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto --
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe -- que faz a palma,
É chuva -- que faz o mar.




domingo, 23 de outubro de 2005

"Tudo que existe conta"

Rating:★★★★★
Category:Other
O título dessa crônica é um verso de Adélia Prado, um verso que expressa uma verdade incontestável: as pessoas e até mesmo as coisas se dizem. O universo inteiro ressoa para aqueles que têm ouvidos para ouvir. Por isso, gosto de contar histórias, assim mesmo, com “his”, porque, de certa forma, tudo é imaginação, sem deixar de ser memória.

O ato de narrar e contar histórias faz parte do imaginário da humanidade. Narramos para espantar os nossos medos, para conhecer o mundo, o outro e a nós mesmos; narramos para preencher nossas vidas. Sempre que falamos sobre nosso cotidiano, nossas experiências, estamos praticando a narração. Contamos a lendas familiares e nos reencontramos, inteiros, na trama das gerações.

Como contadora de histórias, acredito que a narração, para cumprir seu efeito terapêutico, precisa ser construída e pensada como uma mensagem estética capaz de emocionar, de evocar alguma coisa profunda, íntima, dentro de nós, e que somente pode ser alcançada através da linguagem artística.

Os bons contadores sabem disso, portanto, mergulham nos contos até extrair deles toda beleza, todos os sentidos possíveis; não é importante contar muitas histórias, ter um repertório extenso. O importante é apreender a emoção estética do conto. Para isso, temos que mergulhar, saborear - saber com os sentidos as histórias, porque é essa mágica que vai captar a atenção do público, que vai cativar os ouvintes e colaborar para a formação dos futuros leitores. Contar histórias é como alimentar as crianças pequenas. Oferecemos o alimento em porções dosadas e as crianças crescem saudáveis. Oferecemos as histórias e as ajudamos a amadurecer, enfrentar os próprios medos, descobrir a própria mágica, aquela varinha de condão secreta, que, quando nos tornamos adultos, passamos a chamar de auto-estima.

Sandra B.

domingo, 16 de outubro de 2005

Literatura e Educação

Rating:★★★★★
Category:Other
Recentemente, participei de uma palestra sobre educação não-formal, mesmo porque estou envolvida em alguns projetos que valorizam essa proposta. Embora o tema tenha sido abordado de forma mais geral, acredito que cada ouvinte aplicou o ensinamento à sua área de atuação. No meu caso, colaborou para reforçar algumas idéias sobre as quais tenho refletido, relacionadas ao dueto (que muitas vezes se transforma em duelo) Literatura e Educação.
É inquestionável que a escola tem um papel essencial na formação do aluno-leitor, entretanto, no contexto da rotina educacional muitas vezes assistimos aquilo que os pesquisadores da área chamam “didática da destruição da leitura”, que ocorre quando esta é entendida, apenas, como uma espécie de ponte para a verdadeira necessidade, que seria estudar, menosprezando o diferencial de qualidade representado pelo ensino precoce da Literatura.
Pensar essa problemática se torna fundamental quando nos deparamos com algumas estatísticas, como por exemplo, aquelas publicadas no documento Retrato da Leitura no Brasil (2004); segundo a pesquisa, apenas 15% dos quase 180 milhões de brasileiros podem ser considerados, de fato, leitores. O mesmo documento relata que apenas um em cada quatro brasileiros consegue entender totalmente as informações de textos mais longos e relacioná-las com outros dados. De acordo com este levantamento, aproximadamente 40% dos brasileiros podem ser considerados analfabetos funcionais, isto é, pessoas que não conseguem utilizar a leitura e a escrita na vida cotidiana!
A presença do texto literário na escola precisa ser repensada; esse texto não pode ser utilizado somente como objeto útil ao ensino da gramática e mediador dos exercícios de interpretação, mas, como objeto estético cuja mágica tem potencial para reencantar o ambiente educacional. Utilizado de forma mais lúdica, o texto literário certamente cumprirá, também, o papel de facilitador do ensino da Língua Portuguesa e das demais disciplinas.
O enfoque estético do texto literário, objetivando melhorar a competência em leitura, tem sido muito utilizado em programas de educação não-formal – oficinas de formação de leitores e de contação de histórias - que, infelizmente, não são acessíveis à população que mais necessita deles. Assim, faz-se necessário que a escola, principalmente a escola pública, abrace esse desafio, promovendo o encontro prazeroso entre a Literatura e as crianças e jovens.
A escola e a literatura possuem caráter formativo; se a relação entre ambas ocorrer de forma mais harmoniosa, e menos utilitária no que se refere à concretização dos supostos objetivos escolares, quem sabe teremos a possibilidade de vencer o analfabetismo funcional através do gosto pela leitura. Afinal, gosto se aprende e o que se aprende se ensina.

Sandra B.

quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Adélia*


 


            Nascera para deixar os homens esperando. O pai, seu primeiro e mais fiel adorador, contara-lhe segredos admiráveis sobre eles. Sacrificara, impiedoso, a sua própria imagem de macho arrogante para que ela pudesse ver - o homem - despojado do feitiço da virilidade.


            Ela não tinha memória do dia em que percebera que ele estava empenhado em reconstruir-se nela. A mãe, praticante de uma submissão irônica, assistira, mais curiosa que preocupada, o aprendizado da pequena Adélia.


            Na verdade, apenas quando a menina já contava catorze anos, a mulher, que passara a vida bebendo amargura, pressentiu, de forma agoniada, o destino que o pai pretendia lhe dar. Foi, entretanto, privada de assistir o desfecho das coisas. Morreu. Câncer de estômago.


            Ele vivia com a boca seca. Quem deseja sabe. Planejara permanecer casado somente por dois ou três anos, no máximo. As mulheres nunca o atraíram e a convivência com elas parecia-lhe sufocante. Contudo, Adélia (colocara na filha o nome de sua avó, não que a amasse, apenas para seguir a tradição) não lhe permitiu tal opção.


            Ele a amou. Compreendia que se amava nela, mistérios da incorporação. Sabia, também, que caso se separasse da esposa, Adélia estaria perdida para ele. Decidira ficar e tecer as tramas da vida da filha.


            A esposa não se importara; a menina pertencia, sobretudo, a um nome. Tinha a vida penhorada. Ele não precisou disputar Adélia com ninguém. Eram apenas os dois. Cúmplices.


            Cúmplices, sim, pois não lhe mostrara ele, aquela fotografia? Oh! Sim! Ela era um bebê. Ele montara cuidadosamente a câmera sobre o tripé, depois de ter depilado o tórax. Lambuzara os mamilos com mel e aproximara a menina para que ela os sugasse. Repetira muitas vezes o ritual. A mãe se recusara a amamentá-la: coisa animalesca, dizia.           


Ao mostrar-lhe a foto, ela chorara. Devia ter uns dez anos. Ele também chorou, tomado de um sentimento de devoção. No dia seguinte ela menstruara. Ele mandou que ela lesse os livros de Jean Genet; ela leu o que havia para ser lido. Ah! Os segredos que compartilhavam...


            Não temeu, nem mesmo quando viu a fêmea desabrochando feito flor daquela carne tão branca. Adélia crescera noturnamente. Ele presenteou-a com um objeto inesperado: que nenhum homem a surpreendesse virgem!


            Ela adorava o poder. O poder de ser Adélia. Afiava os olhos nas faces dos homens que viviam cercando-a. Sabia que eles queriam muito mais do que ela poderia dar. Todo o seu ser estava comprometido com o homem com o qual celebrara ritos secretos de comunhão. Ritos doces como o mel.


            Nunca. Nunca em toda sua vida desejara uma mulher. Mas, aquela, não era uma mulher. Era, talvez, uma obra de arte. De sua autoria. Ela praticava, contra ele, as lições que ele passara a vida ensinando-a.


            Desejar doía. Com a carne dilacerada pela angústia da posse adiada, ele esperava, sempre. Não fora ele que a ensinara a tardar?  Vez por outra ela atraía homens para a sua cama. Cúmplices.


            Fora numa dessas noites que ele atinara com sua própria verdade. Adélia não era dele: era ele. Desta vez, presenteou-a com um terno, um belíssimo costume, feito sob medida, incluindo um chapéu.   


 


Sandra B.


 


* Adélia. Coletânea "Capitus?"


Imagem: Bartira, de  Miguel Ángel Perez.

sábado, 8 de outubro de 2005

A vingança dos objetos (novo canto)


antes


a tua boca


rompendo manhãs


depois


rompida a costura


das noites dias


fraturados.


 


 


Sandra B.


 


imagem: Lovers, Nicollette Canvas, 2002.


 

terça-feira, 4 de outubro de 2005

CMI - Centro de Mídia Independente da internet

http://quimas.multiply.com/journal/item/71
Para todos aqueles que acreditam que a democratização da informação é fundamental para a inclusão social.

domingo, 2 de outubro de 2005

Poemas Visuais - Philadelpho Menezes




Philadelpho Menezes nasceu em São Paulo, em 1960, e morreu num acidente automobilístico, em 2000. Publicou seu primeiro livro de poemas: "4 achados construídos", em 1980, portanto, tinha apenas 20 anos de idade. Depois, seguiram-se: "Poemas 1980-1982" (1984) e "Demolições (ou poemas aritméticos)", publicado em 1988. Também escreveu "Poética e Visualidade - Uma Trajetória da Poesia Brasileira Contemporânea" (Ed. UNICAMP, Campinas 1991) e foi o organizador de "Poesia Sonora - Poéticas Experimentais da Voz do Século XX" (EDUC, SP, 1992, aliás, imperdível). Foi o articulador e coordenador da Mostra "Poesia Intersignos" - que aconteceu em São Paulo (1988). Sempre penso em Philadelpho e Mário Faustino: ambos foram embriões de uma promessa incomparável da poesia brasileira e, infelizmente, partiram tão cedo. Vita brevis!
Art(e)terna.

sábado, 1 de outubro de 2005

Persona (Bergman, 1966)

Rating:★★★★★
Category:Movies
Genre: Drama
Estou revendo a obra de Ingmar Bergman, o mestre da sublimação da própria dor através da Arte. Persona (1966) é um dos melhores filmes de todos os tempos, considerado a obra-prima de Bergman.
Particularmente, considero um dos filmes mais belos da história do cinema, talvez pelos elementos literários intensamente presentes, pela abordagem metalinguística, pelo grau de estesia que a obra nos provoca.
É um filme bastante liberal e o primeiro no qual trabalha com Liv Ullmann, que viria a tornar-se sua grande musa. O filme conta a história de Alma (Bibi Andersson) a enfermeira incumbida da recuperação psíquica de Elisabet (Liv Ullmann, uma atriz que perdeu a voz durante a exibição do espetáculo Electra. (Não sei se devo dizer que a voz tem uma relação enorme com a nossa potência de vida, mas, enfim, já disse). O seu mutismo foi uma decisão, não fruto de qualquer doença.
Não são poucas as análises acerca do filme,e, a esta altura, é difícil lançar um olhar sobre a obra que não esteja comprometido pelas múltiplas interpretações: ensaio sobre a identidade feminina, história de uma relação lésbica, releitura do mito de Narciso, etc, mas, talvez a única coisa que realmente importe é que Persona é um filme fundamental. Uma leitura da solidão enquanto destino inexorável do homem e a possibilidade de resgate supostamente oferecida pela Arte, pelo Sexo ou pela Religião.
É preciso ver Persona com olhos livres para compreendê-lo em toda sua dimensão trágica, ou melhor, a dimensão trágica (e porque não, absurda) da própria vida. É um filme sobre a dor de descobrirmos o abismo que existe entre o que representamos para os outros e o que somos para nós mesmos, conforme um dos diálogos mais intensos do filme.
Segundo Susan Sontag, que escreveu um ensaio sobre Persona: "para compreender Persona, o espectador deve ultrapassar o ponto de vista psicológico. ... Persona assume uma posição além da psicologia - assim como, num sentido análogo, além do erotismo"

Recomendo enfaticamente.