segunda-feira, 28 de fevereiro de 2005

O homem que amava caixas*


Description:
Vamos nos sentar nesse cantinho especial e ouvir essa história, ela traz uma lição fundamental sobre o ato de encontrar caminhos e formas para expressar o amor.



Ingredients:
Era uma vez um homem. O homem tinha um filho. O filho amava o homem. E o homem amava caixas.
Caixas grandes, caixas redondas, caixas pequenas, caixa altas, todos os tipos de caixas!
O homem tinha dificuldade em dizer ao filho que o amava; então, com suas caixas, ele começou a construir coisas para seu filho. Ele era perito em fazer castelos e seus aviões sempre voavam... a não ser, claro, que chovesse.
As caixas apareciam de repente, quando os amigos chegavam, e, nessas caixas, eles brincavam... e brincavam.
A maioria das pessoas achava que o homem era muito estranho. Os velhos apontavam para ele. As velhas olhavam zangadas para ele. Seus vizinhos riam dele pelas costas.
Mas, nada disso preocupava o homem. Por que ele sabia que haviam encontrado uma maneira especial de compartilharem o amor de um pelo outro.


“O Homem que Amava Caixas”, de Stephen Michael King – Editora Brinque-Book

Directions:
Fui ao moinho, moí a farinha
quem quiser que conte a sua
pois eu já contei a minha!

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

Manon*


Janeiro, fim de tarde. “Em São Paulo, quando chove, chovem carros”. Um poeta assim dissera. Concentrou-se, tentando recordar o poema – “E a água retoma o seu curso original: Anhangabaú, Sumaré, Pacaembu. Ruas onde eram rios...” A chuva não o preocupava, afinal, quando fechasse a livraria só teria que subir dois lances de escadas e estaria em casa.
A moça entrou abruptamente. Procurando abrigo contra a chuva que se intensificara, pensou. Bonita. Os cabelos, escuros e ensopados, cortados bem curtos. Ela sacudiu a cabeça, como faria um cãozinho, para livrar-se do excesso de água. Virou-se e olhou-o, ao mesmo tempo que estendia os braços oferecendo-lhe a pasta que trazia nas mãos.
- O senhor é um alfarrábio? Quer dizer, alguém que compra livros e documentos antigos? É isso?
Reparou nas mãos dela, nos braços magros, na camiseta branca que a chuva tornara transparente, colada ao corpo. Agora os olhos. Verdes. “Abismos de sedução onde cantam sereias”. Leu neles uma ansiedade quase dolorosa. Fez menção de pegar a pasta que ela lhe oferecia; no momento em que ia tirá-la de suas mãos, ela afastou-se, apertando-a de encontro ao peito.
- Eu não quero vender. Só gostaria que fossem avaliados. Quer dizer, o senhor pode fazer isso, não?
- Sim, eu compro livros e documentos antigos; posso avaliá-los também. Mas, primeiro preciso vê-los. Aceita um café?
Não esperou que ela respondesse; guiou-a à uma aconchegante sala, à esquerda de onde ficavam as enormes estantes de madeira, repletas de livros.
- O meu nome é Manon. Todo mundo acha estranho; é a personagem de um livro, entende?
Ele entendia. Observou-a colocar a pasta numa das poltronas e pegar a xícara; sorveu o café aos golinhos, as mãos trêmulas. Cruzou as pernas, magras e longas. A boca, essa era digna do nome que ela carregava: os lábios cheios, feitos para as taças de cristal, para as mais finas porcelanas, para conjugar os verbos da paixão. Manon Lescaut.**
Dezoito horas. O livreiro desculpou-se e foi fechar a livraria, acreditando que com ou sem chuva o entardecer em Moema é um dos mais belos do mundo. Enquanto isso, ela abriu a velha pasta e retirou do seu interior uns vinte livrinhos, pequeninos, parecidos com aqueles evangelhos distribuídos nos hospitais. Chovia, ainda.
De repente, arrependeu-se de sua empreitada; jamais deveria ter vindo, coisa de gente desesperada. Nunca teria coragem de vender o seu tesouro; experimentou uma angústia enorme só de pensar nisso: um passarinho batendo asas, loucamente, no interior do seu peito. Melhor morrer de fome, pensou.
As mãos apressadas recomeçavam a guardar os livros quando ele retornou e viu alguns dos livrinhos espalhados sobre a mesa; teve um sobressalto. Será? Percebeu-a assumir uma posição defensiva, olhar verde-trincheira. Ele entendeu, num relance, porquê dizem que a alma é caçada pelos olhos.
- Deixe-me vê-los... por favor! E já segurando um deles: - Sabia que existiam, mas nunca pensei que um dia os veria. O “Paraíso Perdido,” de Milton, a edição ilustrada lançada no século XVIII! Você tem todos os volumes? Eu não posso comprá-los, é claro, tudo que tenho não bastaria para tanto; mas posso falar com alguns colecionadores, muito discretamente, posso colocá-los no mercado.
No instante mesmo em que falava soube que ela não se separaria deles. Observou-a segurando os livros, seu toque era quase uma carícia. Viu a paixão acompanhada do seu mais fiel seguidor: o medo de perder. Ela balançou a cabeça numa negativa muda. Compreendeu-a perfeitamente.
Chovia. Indicando uma porta lateral, apertou a mão que ela ofereceu na despedida. “Em São Paulo, quando chove, chovem apocalipses de quintal.”
Manon aconchegou a pasta contra os seios, delicadamente. Lembrou-se que ainda lhe restava uma segunda opção. Cumpriria o destino de seu nome. Se tudo na vida tem preço, então seria justo fazer do corpo moeda sonante. Sob a chuva, São Paulo se lhe afigurou um imenso bordel.

Sandra R. S. Baldessin


Poemas citados: Quando Chove, Frederico Barbosa. (in:Contracorrente, 2000); Fragmento de Coelho Neto;

* Coletânea "Capitus?", inédita. .
** Manon Lescaut, romance francês, escrito por L’ Abbé Prévost no século XVIII e transformado em ópera por Puccini; Maria Callas, a Diva Gloriosa, realizou a interpretação mais aclamada da prostituta francesa.
Imagem disponível em: www.karenscollectables.co.uk/book_manon_lescaut.JPG

Pirlimpsiquice

Rating:★★★★★
Category:Movies
Genre: Independent
Na quinta-feira, 24, Jaime (http://jaimeleitao.multiply.com) e eu estivemos na pré-estréia do filme “Pirlimpsiquice”, do jovem cineasta rio-clarense João Paulo Miranda. O filme, cujo enredo está baseado na obra homônima de Guimarães Rosa, foi rodado na Floresta Navarro de Andrade e Fazenda Santa Gertrudes. Gostei da ousadia de João Paulo em se apropriar da obra de um dos mais instigantes autores brasileiros, considerado por muitos críticos como o maior expoente de nossa Literatura. Talvez, se ele esperasse até ganhar maior experiência, enfrentaria o mesmo medo que impediu que muitos outros cineastas renomados levassem a obra de Guimarães Rosa para as telas.
No filme, como no conto, um professor (interpretado por Jefferson Primo) prepara seus alunos para uma representação teatral em torno da qual a cidade se agita. Porém, na hora da apresentação, os atores esquecem as falas e reinventam a peça ao seu modo, criando neologismos através dos quais interagem entre si e com a platéia.
O desempenho desses atores-mirins foi um espetáculo à parte: a impressão é que nunca fizeram outra coisa na vida, a não ser decorar textos e estar diante de uma câmera. O destaque fica por conta da graciosa Marilise Brito Teixeira, de 11 anos, por sua delicada interpretação que nos comoveu demais.
Todo o trabalho de edição (digital) foi realizado pelo João Paulo, revelando sua garra, sua vontade de fazer as coisas acontecerem. Pirlimpsiquice estará concorrendo em vários festivais de cinema, no Brasil e no exterior, e esperamos que alcance merecidos prêmios. O nosso prêmio, já ganhamos: os quarenta minutos, de pura delícia, de exibição da película. O filme será exibido entre os dias 8 e 17 de março no cinema do Shopping Center Rio Claro, em Rio Claro.

Fotografia: a atriz Marilise Brito Teixeira.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2005

O quebrador de pedras


Description:
Há muitos anos, vivia na China um jovem chamado Mogo cujo meio de vida era lascar pedra pelas ruas, debaixo de sol e chuva. Seu trabalho era muito cansativo, mas Mogo era são e forte: podia ter sido muito feliz.
No entanto, estava muito descontente com sua sorte e nada mais fazia que queixar-se desde manhã até à noite.
Seu anjo da guarda via com pesar como seu protegido desprezava tudo o que de bom o Senhor lhe havia dado e invejava os que tinham mais que ele, tinha medo que a alma de Mogo se desfigurasse e acabasse por perder-se.
Por isso, uma noite em que o jovem dormia, o anjo estendeu suas grandes asas brancas e elevou-se até o céu. Prosternou-se ante o Senhor e suplicou-lhe que concedesse a Mogo a graça de transformar-se em um poderoso cavaleiro de modo que não tivesse que invejar ninguém e, assim, salvar sua alma.
- Eu o concedo - disse o Senhor. - E de agora em diante Mogo terá tudo o que desejar.
No dia seguinte, Mogo estava entregue a seu trabalho, quando de repente foi envolvido por uma nuvem de poeira levantada por um grupo de cavalos que puxava a carruagem em que viajava um nobre, cujo traje de ouro e pedras preciosas brilhava as sol.
Passando as mãos pelo rosto suarento e sujo, Mogo disse com amargura: - Por que não posso eu ser nobre também?
- Sê-lo-ás! - murmurou seu anjo invisível com imensa alegria.
E Mogo foi dono de um palácio suntuoso e de terras infindas, e teve servidores e cavalos. Costumava sair todos os dias com seu impressionante cortejo para ver como o povo e, especialmente seus antigos companheiros, alinhavam-se respeitosamente à beira da rua.
Numa tarde de verão, percorria o campo com sua escolta. O calor estava insuportável, e debaixo de seu guarda-sol dourado, Mogo transpirava nem mais nem menos do que quando lascava pedras. Pensou então que não era o mais
poderoso do mundo: sobre ele havia príncipes, imperadores, e ainda mais alto que estes estava o sol, que a ninguém obedecia e que era o rei do firmamento.
- Ah, anjo meu! Por que não posso ser o sol? - lamentou-se Mogo. - Pois sê-lo-ás! - exclamou o anjo docemente mas, com uma enorme tristeza, ante tanta ambição.
E Mogo foi sol, como era seu desejo.
Enquanto brilhava no céu em todo seu esplendor orgulhoso de poder amadurecer as colheitas e as frutas na terra, ou queimá-las, a seu bel-prazer. Um ponto negro avançava ao seu encontro. A mancha escura crescia conforme avançava. Era uma grande nuvem que estendia seus escuros véus em torno do disco luminoso do sol. O astro rei lançava seus raios luminosos mais potentes contra a nuvem que o ofuscava, tentando incendiá-la. Mas as trevas fizeram-se cada vez mais densas e a noite desceu. - Anjo! - gritou Mogo - A nuvem é mais forte do que eu! Quero ser nuvem! - Sê-lo-ás! - respondeu o anjo. Mogo, sendo nuvem, desencadeou-se: - Sou poderoso! - gritava, escurecendo o sol. - Sou invencível! - trovejava, perseguindo as ondas. Mas, na costa deserta do oceano erguia-se uma imensa rocha de granito, tão velha como o mundo. E a Mogo parecia que a rocha o desafiava e encadeou
uma terrível tempestade. As ondas, enormes e furiosas, golpeavam a rocha como a querer arrancá-la do solo e atirá-la no fundo do mar. Mas, firme e impassível, ali estava a rocha.
- Anjo! - soluçava Mogo, - a rocha é mais forte que a nuvem! Quero ser rocha. E Mogo foi rocha.
- Quem poderá vencer-me agora? - perguntava a si mesmo.
Certa manhã, Mogo sentiu uma lancetada aguda em suas entranhas de pedra, e em seguida uma dor profunda como se uma parte de seu corpo de granito estivesse sendo dilacerada. Logo ouviu golpes surdos, insistentes, e novamente a dor lancinante... Louco de espanto gritou:
- Alguém está matando-me anjo! Quero ser como ele! - E sê-lo-ás! - exclamou o anjo chorando.
E foi assim que Mogo voltou a lascar pedras.


Ingredients:
Recebi esse conto chinês da querida amiga e contadora de histórias Marília Tresca.

Directions:
Fui ao moinho, moí a farinha
quem quiser que conte a sua
pois eu já contei a minha!

imagem dispónível em: : www.geagea.com/ 11indi/11_13.htm

domingo, 20 de fevereiro de 2005

Da delícia que é ter O. Paz à cabeceira

Rating:★★★★★
Category:Other
Tenho uma verdadeira relação de leitura apaixonada com Octavio Paz; sua poética cativou meu imaginário desde o primeiro contato. Reproduzo aqui alguns dos poemas que mais me deixam estésica, inclusive "As palavras" de Porta Condenada (1938-1948), ao qual já emprestei o suporte do corpo numa performance realizada em 2002. Poesia para ser experimentada, lida em voz audível, entoada; lida no escuro, sentindo as palavras brotando no fundo da garganta, se perdendo no sabor delas.

AS PALAVRAS

Girar em torno delas,
virá-las pela cauda (guinchem, putas)
chicoteá-las,
dar-lhes açucar na boca, às renitentes,
inflá-las, globos, furá-las,
chupar-lhes sangue e medula,
secá-las,
capá-las,
cobri-las, galo galante,
torcer-lhes o gasnete, cozinheiro,
depená-las,
destripá-las, touro,
boi, arrastá-las,
fazer, poeta,
fazer com que engulam todas as suas palavras.

O RIO (fragmento)

À metade do poema sobressalta-me sempre um grande
desamparo,
tudo me abandona,
não há nada ao meu lado, nem sequer esses olhos que
por detrás
contemplam o que escrevo,
não há nada atrás nem adiante, a pena se rebela,
não há começo nem fim, tampouco muro que saltar,
é uma esplanada aberta o poema,
o dito não está dito,
o não dito é indizível (...)
não tenho nada a dizer,
ninguém tem nada a dizer,
nada nem ninguém exceto o sangue (...)
este escrever sobre o já escrito
e repetir a mesma palavra na metade do poema,
sílabas de tempo, letras rotas, gotas de tinta,
sangue que vai e vem e não diz nada e me leva consigo.

(de Estação Violenta, 1948-1958)


PARA O POEMA

I
Palavras, ganâncias de um quarto de hora arrancado à árvore calcinada da linguagem, entre os bons dias e os boas noites, portas de entrada e saída e entrada de um corredor que vai de partealguma a ladoalgum.
Damos voltas e voltas no ventre animal, no ventre mineral, no ventre temporal. Encontrar a saída: o poema.

(de Águia ou Sol, 1949-1950)

Anestesiados ou estésicos?


"Se os sentidos não forem verdadeiros, falsa será a nossa razão." Lucrécio

A Eliana Mora - http://elpoeta.multiply.com - propôs uma leitura bastante interessante, abordando o que seria a beleza, discutindo questões relacionadas à estética. Dialogando com o pensamento do autor, Gábor Paál, gostei muito de sua definição de “estética elementar”, mesmo porque se relaciona com uma vertente de idéias que tenho estudado e que servem de base para o trabalho que desenvolvo, tanto na escrita quanto nas oficinas de liberação da linguagem criativa que realizo.
Gábor, que no texto subdivide a capacidade de apreensão estética em categorias, define a estética elementar como aquela que “...melhor corresponde à concepção da beleza como experiência sensorial e sensação de prazer”. Nas oficinas, e na minha experiência pessoal de criação, esse é um dos aspectos mais explorados.
A palavra estética deriva do substantivo grego aistheses, que significa percepção pelos sentidos, e poderia ser traduzido por estesia; assim, o belo é aquilo que nos arranca da an – estesia.
O uso clínico dos anestésicos relaciona-se ao bloqueio da dor, que é produzida por um dos mais sofisticados mecanismos fisiológicos através do sistema nociceptivo, fundamental para a manutenção da vida. O sentido, ou sensação da dor nos mantém vivos e nos alerta contra ameaças que a fisiopatologia denomina “injúrias”. Quando o corpo é “injuriado”, é ativada essa proteção chamada dor.
Trazendo esse conceito para o campo da Arte, da abstração e da linguagem, estamos estésicos quando nos deixamos afetar pelas coisas (e porque não pessoas?) que têm potencial para nos arrancar da anestesia. A leitura literária, por exemplo, possui um enorme poder de produzir estesia, e, insisto nessa teoria, é um dos fatores mais importantes dentre os que influenciam a formação de leitores apaixonados.
Estar estésico é desfrutar plenamente dos nossos sentidos, trazê-los aguçados e usá-los no processo de desvendamento da vida, do mundo, das pessoas, no processo do conhecimento. Não acredito que o aprendizado intelectivo seja superior ao sensorial, e, sim, que essas inteligências se intercomunicam. Desvalorizar o modo sensorial de apreender o mundo nos empobrece, nos anestesia.
Estar estésico é abrir-se à invasão, à injúria, ao prazer e provavelmente à dor; fiquei bastante satisfeita com um comentário que um colega aqui do multiply – http://jozedeabreu.multiply.com, postou num dos contos que tenho publicado, e que reproduzo aqui: “...falo da provocação que ... penetra na mente, que futuca a ferida, que dói uma dor vizinha do prazer.” Estar estésico é aceitar a provocação da beleza, não necessariamente dessa beleza bem comportada, padronizada, que tentam nos impingir, mas àqueles ângulos do belo que só os que não tem os sentidos alienados podem descobrir.
Na verdade, a beleza, assim como outras abstrações, não está presente nos objetos, tampouco nos seres, mas, sim, na delicada relação sensorial que estabelecemos com eles.
Anestesiados, perdemos o essencial.

Sandra R. S. Baldessin

imagem: homúnculo sensorial - representação das partes do corpo quanto à área somestésica, ou seja à sensibilidade. Observem o tamanho acentuado da área das mãos, da face e da boca no contexto da face.

sábado, 19 de fevereiro de 2005

TECENDO LEMBRANÇAS


Pajarita. Era assim que abuelita me chamava. Talvez, porque eu fosse inquieta e desejosa de espaço, como os pássaros. Eu me entendia mesmo pajarita, e meu ninho ficava na enorme mangueira que enchia o quintal com sua sombra.
Por mais que me proibissem, eu adorava subir na árvore e me esconder em sua ramagem. Lembro-me do cheiro das folhas e da aspereza dos galhos, lembrança tátil, olfatável, que me devolve a infância.
A sensação de amanhecer no silêncio da árvore. Antes que o dia raiasse, abuelita já estava na cozinha avivando as brasas do fogão de lenha para preparar o café. A minha festa, particular e solitária, consistia em acordar antes que ela se levantasse, escuro ainda, e subir na mangueira, desfrutando aqueles preciosos momentos nos quais me parecia que o mundo não fora inaugurado.
Muitas vezes, eu adormecia novamente, equilibrada nos galhos mais altos, para ser despertada pelo sol que se insinuava, soberano, por entre as folhas verdescuras, impondo sua luz.
Outras vezes, descia e, sorrateiramente, me esgueirava para a cozinha com a intenção de dar um susto em abuelita, que sempre fingia surpresa, não me negando o prazer da brincadeira.
A sua reprimenda ficava esquecida no calor do abraço, aconchegante como a presença da árvore. Os braços fortes dessa mulher também foram o meu ninho.

Saudade que não dói*

O fogão de lenha,
o aroma de café
fresquinho,
o doce de goiaba;
as cantigas
que entoavas,
as hortências,
a empanada,
o afeto sem fronteiras;
as mãos sovando
a massa,
o galo cantando,
a manhã nascendo.
E nós
(pães fermentados
pelo teu amor)
crescendo !

*Poema do livro "À flor do verso", 2001.
imagem: Pajarita, 1963.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005

Cibernômades


A expressão “cibernômade” me veio repentinamente. Na verdade, eu estava refletindo sobre outro tema; um texto muito especial do historiador e psicanalista Luis Querolim, do qual partilho um breve trecho:

“O homem pós-moderno é alguém que progressivamente dá-se conta que a vida não é útil, mas, pelo contrário absolutamente última...[esse] homem passa a admitir o nomadismo de sua existência. Queremos crer que desse nomadismo deva nascer um senso ético baseado, não na promessa divina, ou na promissão científica/industrial de bem estar, mas num senso ético ancorado na efemeridade própria do viver, nos percalços do subsistir, enfim no desamparo... [esse homem] está descobrindo que a sua saga é des/arraigar-se, e que a vida é uma grande aventura, única, saborosa, acre.”

O ancestral nômade, o caçador-coletor, ainda sobrevive costurado à nossa pele e sua nostalgia do desarraigamento pode ser cumprida no ciberespaço.
Vivemos um momento de vertigem. Momento que se prolonga no tempo, sem as margens do espaço. O fim da linearidade espacial, que definia nosso sentido geográfico de “aqui”, acena com a possibilidade de existirmos para além de nós mesmos.
No ciberespaço experimentamos um “agora” que se expande ao mesmo tempo em que se cristaliza, abrangendo o presente infinito. Vivenciar esse infinito é um desejo atávico do homem, muito bem traduzido por Bataille em sua obra “O Erotismo”:

“Se alguém me perguntasse o que somos, o que o homem é, responder-lhe-ia: é a abertura a todo o possível, é expectativa que nenhuma satisfação material poderá apaziguar”.

Cibernômades, retomamos a jornada do ancestral caçador-coletor, abertos a esse “todo possível” de que fala Bataille. Habitamos mundos que, supostamente, prescindem do corpo, pelo menos enquanto matéria. Somos imagem que se projeta e, como tal, está sujeita à apropriação dos interlocutores e conseqüentemente às mais variadas interpretações. Sobretudo, o cibernômade é alguém envolvido num processo lúdico de invenção, de autopoiese.
Fiz questão de usar o advérbio “supostamente”, pois, na verdade não ocorre a ausência do corpo, apenas aquilo que chamarei de não-presença, ou a propriedade de não-estar-estando. O que esse cidadão do ciberespaço teria em comum com o caçador-coletor nômade?
Acredito que uma espécie de liberdade de ser o mesmo sendo outros; observem que não estou me referindo à possibilidade de sermos outros sendo o mesmo, o que redundaria, apenas, na criação de novas identidades. Refiro-me à forma como somos coletados, lidos, pelos demais cibernômades que se apropriam de nós. A partir dessas leituras, sujeitos-processo que somos, vamos nos desconstruindo e reconstruindo. Fico encantada ao recordar que Fernando Pessoa, em seu ofício p(r)o (f) ético, nomeou esse ato como “mecanismo de outrar”!
O caçador-coletor se movimentava constantemente em busca de alimento; e nós, cibernômades, o que buscamos?

Sandra R. S. Baldessin

imagem: el nomade. disponível em: www.andalucia.com/ flamenco/camino/home.htm

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2005

Casarões antigos de Rio Claro


Cadeia e Casa de Câmara. Localizava-se à Avenida 5, Ruas 6 e 7. Foi inaugurada em 1870 e demolida em 1967.

Os desenhos feitos com bico-de-pena são da autoria do artista Percy de Oliveira e datam de 1986. A edição é do Arquivo Histórico do Município de Rio Claro. A beleza do trabalho, certamente se deve ao Percy, se falhas houverem, ponham na conta dessa aprendiz de fotógrafa.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2005

Leda*


Será, doutor, que existe algum lugar ao qual possamos ir e preencher um requerimento solicitando a vida de volta? Uma repartição qualquer, com uma moça entediada atrás do balcão; você paga uma taxa e recebe o formulário que deverá ser preenchido e assinado e... pronto! Possui a própria vida novamente sob custódia.
Diga-me você, que já estudou tanto, já ouviu centenas de histórias, existe esse tal lugar? Não. É claro que não. Isso não importa, já que facilmente posso criar esse paraíso psicótico...
Gosto que me olhe assim - tão atento e agradecido – pelo simples fato de que a louca sou eu. Mas, você meu caro, não sabe o que está perdendo, afinal, “imaginamos o que desejamos; queremos o que imaginamos; e, finalmente, criamos o que queremos.” Que mal pode haver nisso?
Mas, voltando ao que me aflige, exijo que me cure, sou a cliente, aquela que sempre tem razão... Não espere que eu me comporte com suavidade, mas, por favor, invada o meu mistério, ou será que... Você também tem medo das minhas trevas?
Isso, olhe as minhas pernas. Eu gosto de perceber que você me lê como mulher até o limiar do seu controle. Controle pode ser coisa de gente normal, mas, não necessariamente de gente feliz. Chega, chega de conversa fiada; eu sei que inquieto você, que na hora do banho você pensa em mim e que a única terapia ao seu alcance é um orgasmo solitário.
Pronto, falei a palavra mágica... SOLIDÃO. Ah! Quantas concessões uma mulher pode fazer à solidão..E eu fiz todas, é claro. Naveguei solidão adentro, encontrei-a em todos os leitos, abracei-a em todos os corpos que semearam o meu.
Você está assustado, vejo nos seus olhos... O mérito é todo meu por ter despertado a consciência da sua própria solidão.
Viver é uma travessia muito longa. Eu sei que você gostaria de medir a temperatura da minha pele, aconchegar-se ao meu seio. Eu me empenho para ser a sua mais irresistível fantasia. Vista-a! Eu ordeno!
A consulta está chegando ao fim e continuo sem nenhuma certeza... Você, como eu, está agonizando. Quer, também, a sua vida de volta?

Sandra R. S. Baldessin

* coletânea de contos "Capitus?" , inédita.
imagem: Freud. disponível em: http://members.surfeu.at/4all/freud.jpg

domingo, 13 de fevereiro de 2005

cantiga de leonardo*


Nunca foste
aquela
do retrato.
Ah!, se a fosses...
Tátil ao olhar
que te inventava
(líquida e
som)
ao criar-te
tu me darias
vida?


Sandra R. S. Baldessin

*coletânea "psicopoemas", inédita.

Peixão*


Caiu na rede é peixe. Na época em que eu era mocinha os homens usavam essa expressão para explicar porque se relacionavam com qualquer mulher que mordesse a isca. Não que precisassem de qualquer justificativa, eles eram homens e isso já explicava tudo. Para contextualizar a metáfora, eles nos chamavam de peixões e quase todos os rapazes tinham como hobbie a pesca artesanal: pescavam, mas não comiam. Comer, mesmo, só comiam as piranhas, que, naquela época, se diferenciavam das sereias de família por um detalhe significativo: os favores delas custavam mais barato e ninguém acabava com aliança no dedo, definitivamente fisgado.

* esse texto, embora tenha recebido um "tratamento literário", por assim dizer, é baseado numa das entrevistas realizadas com os velhinhos que participaram do projeto de história oral que analisa a presença feminina no espaço público em Rio Claro/SP. A senhorinha que gravou o depoimento que me inspirou a escrever esse texto é um ser humano maravilhoso, e a publicação fica como um tributo a ela: Dona Cotinha.

Imagem disponível em: http://www.studiobobs.com.br/173_SEREIA_PEDRAS.JPG


Mitos e Lendas dos Kamaiurá


Description:
Os kamaiurá são uma nação indígena que habita o Parque Indígena do Alto do Xingu. A cultura dos Kamaiurá é de uma riqueza ímpar. Seus mitos se dividem da mesma maneira que ocorre a organização do cosmos, em três planos: •Celestial
•Terrestre
•Inferior

Esses planos são representativos de um todo, integrado com a vida regular e cotidiana dos índios, ou seja, a realidade indígena vivenciada no cotidiano desdobra-se nestes três planos interligados.
A história que conto agora para vocês é um mito do Plano Celestial.




Ingredients:
Aravutará - o destino dos mortos

Aravutará tinha um amigo que era seu companheiro inseparável. Eles , pescavam, caçavam, trabalhavam e passeavam juntos. Combinaram entre si que aquele que morresse primeiro deveria ser procurado pelo outro.
Transcorridos alguns dias desta conversa, o amigo de Aravutará adoeceu e acabou morrendo. Conforme haviam combinado, Aravutará saía diariamente em busca do espírito do morto, procurando-o em todos os lugares por eles freqüentados.
Num dia em que houve eclipse, Aravutará saiu novamente em busca do amigo e, finalmente, ouviu o riso dos mama’e (espíritos); entre eles estava o seu amigo.
Todos os mama’e dirigiam-se para a aldeia dos pássaros, onde é travada a batalha entre eles. Aravutará resolveu acompanhar seu amigo para ajudá-lo na batalha, na aldeia dos pássaros.

Durante o caminho, os mama’e passaram por diversas dificuldades, tais como: espinhos, sapos (arutsam) e caranguejos, sendo, sempre, ajudados por Aravutará. Ele os ajudava, pois, os mama’e não podem se ferir, porque, caso se firam e morram, acabam-se de uma vez.
Os mama’e chegam à aldeia dos pássaros, onde tem início a batalha; os mama’e foram morrendo, um após o outro.
Aravutará, então, começou a tocar o seu nhumiatotó (gaita de bambu), tentando fazer com que as aves se afastassem dos mama’e.
Devido ao som produzido pela gaita, as aves realmente se afastaram, porém, em seguida, voltaram ao ataque. Sendo assim, Aravutará decide entrar na batalha e o chefe dos pássaros ordena que eles parem de brigar e se retirem, pois Aravutará os estava matando a todos.
Finda a batalha, os amigos se despedem e Aravutará toma o caminho de volta de sua aldeia, revelando a todos o que acontece quando uma pessoa morre.



Directions:
Fui ao moinho, moí a farinha
quem quiser que conte a sua
pois eu já contei a minha.

imagem: jovens kamaiurá. Foto cedida por uma amiga antropóloga que está me repassando as histórias.


sábado, 12 de fevereiro de 2005

Coisas de Clarice, suas palavras-coisa:

Rating:★★★★★
Category:Other
"Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro porque exatamente eu o disse, e com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva. (...) É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação: salva a alma presa (...) salva o dia que se vivi e que nunca se entende a menos que se escreva (...) é não mentir o sentimento (...) lembro-me agora com saudade da dor de escrever livros."
Clarice Lispector

Trecho transcrito de uma entrevista concedida em 1976 ao jornalista português Rolmes Barbosa.

Divagando madrugadas e refletindo estrelas


Gosto das estrelas. Gosto mais ainda da palavra estrela. A estrela não cabe onde eu possa guardá-la. A estrela-que-se-diz cabe inteira na boca, desliza na língua, alimentada pelo mel da saliva. Se digo: estrela, a noite vaza céu da boca afora e ilumina a imaginação.

Cada estrela me penetra.
Tanta lua extravasando
seu perfume
em minha pele e
a flor da madrugada
brotando em meu jardim...

Sandra R. S. Baldessin

Imagem: La noche estrellada. DRAAL. disponível em: www.uv.es/~ten/a/a2.html




terça-feira, 8 de fevereiro de 2005

VERA*


“Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância (...)
A falsa, (...) que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.”
Fernando Pessoa


Hoje, sei que andei grávida de uma coisa que nunca nasceria. Dentro do uterocárdio, alimentei-o com as mais saborosas mentiras que uma mulher pode contar a um homem. Tentativa de fazê-lo vingar, como diziam os antigos sobre a violência que é sobreviver. Um tempo em que a vida me parecia líquida e certa. Nos labirintos do meu corpo ocultei-o e a vida se resumia na posse.
Hoje, despossuída, relembro a fome de avelãs que tive dele. Mas, a boca já não se enche d’água (nem os olhos) e nem preciso fingi-lo nesse outro que me abraça. Perdi o paladar e acho até que o dom de chorar de saudade. Embora quem me conhece afirme que eu ganhei a minha vida de volta. É uma gente discursiva e séria, devem ter razão.
Às vezes, só às vezes, eu me pergunto se eles não percebem que eu inventei um dublê pra viver essa tal vida recobrada. Ela vive a vida que um dia eu vivera, enquanto a observo se movimentando dentro do meu silêncio. É bonita essa mulher, decidida a cumprir o meu destino de boa moça. Empenhada em realizar sonhos que sonharam para mim.
Hoje, não sonho e nem acredito, mas ela não permite que ninguém se dê conta disso. Vestida com as minhas incertezas, me disfarço na sua eficiência. Já não há bichos, sequer estrelas, no corpo dela. Às vezes, só às vezes, eu me pergunto se ninguém percebe que eu não sobrevivi, que é falsa essa mulher que vive a vida que finjo viver.
Eu gosto dessa mulher que me inventei e que se presta aos papéis que eu não suportaria representar. Contabilizando tudo, devo a ela muito mais do que a harmonia na mesa de jantar e o gozo mentido. Não fosse ela tão conivente com as minhas mentiras jamais estaríamos aqui, nesse civilizado almoço familiar, comemorando os meus (dela) sete anos de felicidade conjugal.
Não fosse ela tão ordeira e consciente dos seus deveres, não me vigiasse tanto, o fogo latejante do corpo que partilhamos poderia novamente se alastrar. O fogo que faria derreter o chumbo das pernas e, luz, talvez revelasse que a flor do desejo ainda brota das entranhas, poderosas suas raízes de avelã. Sentinela, pensando no futuro, essa mulher elabora um pretérito-mais-que perfeito negando-me até mesmo o direito à memória.
Hoje, estão todos felizes, brindando o meu retorno à normalidade, ao universo das pessoas que sabem fazer exatamente o que se espera delas. O sorriso cicatrizado no rosto, ela-de-mim também levanta a taça, que, por estratégia de segurança, contém suco de uva. In vino, Vera.

Sandra R. S. Baldessin

*Coletânea "Capitus?" (inédita)
Imagem: Série de autofotografias "Outras de mim" (fev.2005)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2005

A história de Kwaku Ananse*


Description:
Todos acomodados, cada qual em sua almofada? Então, vamos a mais uma história. Essa pertence à tradição oral africana.

Ingredients:
Existe uma lenda africana que nos conta que houve um tempo em que na Terra não havia histórias para se contar, pois todas pertenciam a Nyame, o Deus do Céu.
Kwaku Ananse, o Homem Aranha, queria comprar as histórias de Nyame o Deus do Céu, para contar ao povo de sua aldeia, então por isso um dia, ele teceu uma imensa teia de prata que ia do céu até o chão e por ela subiu. Quando Nyame ouviu Ananse dizer que queria comprar as suas histórias, ele riu muito e falou:
O preço de minhas histórias, Ananse, é que você me traga Osebo, o leopardo de dentes terríveis, Mmboro os marimbondos que picam como fogo, e Moatia a fada que nenhum homem viu.
Ele pensava que com isso, faria Ananse desistir da idéia, mas ele apenas respondeu:
Pagarei seu preço com prazer, ainda lhe trago Ianysiá, minha velha mãe, sexta filha de minha avó.
Novamente o Deus do Céu riu muito e falou:
Ora Ananse, como pode um velho fraco como você, tão pequeno, tão pequeno, tão pequeno, pagar o meu preço?
Mas Ananse nada respondeu, apenas desceu por sua teia de prata que ia do Céu até o chão para pegar as coisas que Deus exigia. E correu por toda a selva até que encontrou Osebo, leopardo de dentes terríveis.
Aha, Ananse! Você chegou na hora certa para ser o meu almoço.
O que tiver de ser será. disse Ananse. Mas primeiro, vamos brincar do jogo de amarrar?
O leopardo que adorava jogos, logo se interessou.
Como se joga este jogo?
Com cipós, eu amarro você pelo pé e pelo pé com o cipó, depois desamarro, aí, é a sua vez de me amarrar. Ganha quem amarrar e desamarrar mais depressa.
Muito bem – rosnou o leopardo que planejava devorar o Homem Aranha assim que o amarrasse.
Ananse, então, amarrou Osebo pelo pé, pelo pé, pelo pé e pelo pé, e quando ele estava bem preso, pendurou-o amarrado a uma árvore dizendo:
Agora Osebo, você está pronto para encontrar Nyame o Deus do Céu.
Aí, Ananse cortou uma folha de bananeira, encheu uma cabaça com água e atravessou o mato alto até a casa de Mmboro. Lá chegando, colocou a folha de bananeira sobre sua cabeça, derramou um pouco de água sobre si, e o resto sobre a casa de Mmboro dizendo:
Está chovendo, chovendo, chovendo, vocês não gostariam de entrar na minha cabaça para que a chuva não estrague suas asas?
Muito obrigado! Muito obrigado! – zumbiram os marimbondos entrando para dentro da cabaça que Ananse tampou rapidamente.
O Homem Aranha, então, pendurou a cabaça na árvore junto a Osebo dizendo:
Agora Mmboro, você está pronto para encontrar Nyame o Deus do Céu.
Depois, ele esculpiu uma boneca de madeira, cobriu-a de cola da cabeça aos pés, e colocou-a aos pés de um flamboyant onde as fadas costumam dançar. À sua frente, colocou uma tigela de inhame assado, amarrou a ponta de um cipó em sua cabeça, e foi se esconder atrás de um arbusto próximo, segurando a outra ponta do cipó, e esperou. Minutos depois, chegou Moatia, a fada que nenhum homem viu. Ela veio dançando, dançando, dançando, como só as fadas africanas sabem dançar, até aos pés do flamboyant. Lá, ela avistou a boneca e a tigela de inhame.
Bebê de borracha – disse a fada – estou com tanta fome, poderia dar-me um pouco de seu inhame?
Ananse puxou a sua ponta do cipó para que parecesse que a fada dizia sim com a cabeça, a fada, então, comeu tudo, depois agradeceu:
Muito obrigada bebê de borracha.
Mas a boneca nada respondeu, a fada, então, ameaçou:
Bebê de borracha, se você não me responde, eu vou te bater.
E como a boneca continuasse parada, deu-lhe um tapa ficando com sua mão presa na sua bochecha cheia de cola. Mais irritada ainda, a fada ameaçou de novo:
Bebê de borracha, se você não me responde, eu vou lhe dar outro tapa.
E como a boneca continuasse parada, deu-lhe um tapa ficando agora, com as duas mãos presas. Mais irritada ainda, a fada tentou livrar-se com os pés, mas eles também ficaram presos. Ananse então, saiu de trás do arbusto, carregou a fada até a árvore onde estavam Osebo e Mmboro dizendo:
Agora Mmoatia, você está pronta para encontrar Nyame o Deus do Céu.
Aí, ele foi a casa de Ianysiá sua velha mãe, sexta filha de sua avó e disse:
Ianysiá venha comigo vou dá-la a Nyame em troca de suas histórias.
Depois, ele teceu uma imensa teia de prata em volta do leopardo, dos marimbondos e da fada, e uma outra que ia do chão até o Céu e por ela subiu carregando seus tesouros até os pés do trono de Nyame.
Ave Nyame! – disse ele – aqui está o preço que você pede por suas histórias: Osebo, o leopardo de dentes terríveis, Mmboro, os marimbondos que picam como fogo e Moatia a fada que nenhum homem viu. Ainda lhe trouxe Ianysiá minha velha mãe, sexta filha de minha avó.
Nyame ficou maravilhado, e chamou todos de sua corte dizendo:
O pequeno Ananse, trouxe o preço que peço por minhas histórias, de hoje em diante, e para sempre, elas pertencem a Ananse e serão chamadas de histórias do Homem Aranha! Cantem em seu louvor!
Ananse maravilhado, desceu por sua teia de prata levando consigo o baú das histórias até o povo de sua aldeia, e quando ele abriu o baú, as histórias se espalharam pelos quatro cantos do mundo vindo chegar até aqui.

Fui ao moinho moi a farinha
quem quiser que conte a sua
pois eu já contei a minha.

* Pesquisa de Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque - Grupo Confabulando - contadores de histórias.



Directions:
imagens: fotografias de oficina de contação de histórias e incentivo à leitura ministrada aos alunos da E.M.E.I Clara Freire. Rio Claro/SP - novembro de 2004.

domingo, 6 de fevereiro de 2005

Fetiche*


O corpo, não.
Os significados;
a possibilidade do
seiobjeto
conter a fantasia;
a parte
pelo todo:
o tomo.

A palavra, não.
Os significantes;
a possibilidade do
verbobjeto
conter a utopia;
a metátese:
o poema nunca
se diz
todo.

Sandra R. S. Baldessin

Imagem disponível em: www.ayaranda.es/.http://sandraregina.multiply.com/ cincosentidos.shtm
essa medalha representa o sexto-sentido. Nas palavras do autor, Carmelo de la Fuente: "La intuición y la contemplación profundas en forma de mujer, con figura de interrogante. Llenando todo, el túnel de la vida y de la libertad creativa."

Pégasus e Andrômeda


Description:
Resolvi transformar esse espaço num cantinho com almofadas e uma enorme colcha de retalhos, lugar de escuta. Bem vindo ao mundo mágico das histórias.

Ingredients:
A primeira história que vou publicar é uma de que gosto muito. Pertence à mitologia grega.


Directions:
Pégasus e Andrômeda

Diz a lenda que muito tempo atrás, num distante país do Oriente, havia um rei chamado Cefeu, casado com a linda rainha Cassiopéia. Tal era a fama de sua beleza, que as pessoas vinham em caravana dos lugares mais remotos apenas para contemplá-la. Com o passar do tempo, a rainha começou a se considerar a mulher mais bonita do mundo. Foi nessa época que cometeu um grande erro. Diante de uma multidão que a aclamava, ousou dizer que era mais bela que as Nereidas. Estas ninfas, para infelicidade da rainha, eram protegidas pelo poderoso deus dos mares — Posêidon —, que ficou irado com a comparação. Num acesso de fúria, ergueu-se das águas segurando o tridente, seu enorme cetro de três pontas, e lançou uma maldição sobre o reino. O nível do mar subiu rapidamente e inundou grande parte do país. Ainda insatisfeito, o deus dos oceanos enviou um monstro marinho para devorar qualquer criatura que se aproximasse do reino pela região costeira.
Os pescadores não se atreviam mais a sair de casa. Os navios estrangeiros que costumavam trazer preciosas mercadorias, não podendo atracar, nem saíam mais de seus portos. E o rei Cefeu foi aconselhado a realizar um sacrifício para aplacar a ira do deus ofendido. A vítima escolhida foi a princesa Andrômeda, sua filha. Deveriam amarrá-la aos rochedos para ser devorada por Cetus, o monstro que aterrorizava a costa. Andrômeda, que além de linda era muito corajosa, resolveu apresentar-se ao sacrifício para salvar o reino. E assim foi amarrada aos rochedos e ficou esperando o monstro.
Enquanto isso, longe dali, um jovem herói cumpria certa profecia. O belo Perseu, filho de Zeus — deus da terra e do céu, que habitava o monte Olimpo — e da princesa Danae, havia recebido três presentes muito especiais: o manto da invisibilidade, sandálias com asas e um escudo de metal, tão polido que mais parecia um espelho. Sua incumbência era matar a Medusa, um monstro em forma de mulher, cujos cabelos eram serpentes vivas. Todos os seres que a Medusa olhava se transformavam imediatamente em pedra. Usando seu manto e voando com as sandálias mágicas, Perseu conseguiu se aproximar da Medusa enquanto esta dormia. Quando ela pressentiu a presença de alguém, despertou, mas viu apenas sua própria imagem refletida no escudo polido do nosso herói. Antes que petrificasse, ele cortou-lhe a cabeça e colocou-a dentro de uma bolsa mágica de couro.
Quando voltava dessa arriscada missão, o jovem encontrou Andrômeda acorrentada nos rochedos e ambos ficaram perdidamente apaixonados. Mas, no exato instante em que eles se olharam, o monstro Cetus apareceu. Foi só então que Perseu se lembrou que trazia consigo a cabeça da Medusa. E não pestanejou. Aproximou-se o mais que pôde e mostrou os olhos petrificantes da Medusa para Cetus, que imediatamente se transformou em pedra e caiu no fundo do oceano. Quando tudo parecia terminado, Perseu aproximou-se de Andrômeda para soltá-la, mas nesse exato instante uma gota de sangue da Medusa, que restara na bolsa, caiu no mar. Posêidon era apaixonado pela Medusa, mas nunca tinha conseguido tocá-la. Esta única gota de sangue em contato com a água provocou um estrondo e uma abundante espuma branca, da qual emergiu um belíssimo cavalo alado chamado Pégaso. E assim, ao ver o filho de sua amada, Posêidon abandonou a idéia de vingança.
Muitas lutas o herói Perseu precisou vencer para chegar à felicidade e casar-se com Andrômeda. E propagou essa vitória ao mundo, mostrando a todos a cabeça decepada da inimiga. Por fim livrou-se dela ofertando-a à deusa Atena, sua protetora.
Segundo a lenda, Pégaso foi recebido no monte Olimpo, morada dos deuses gregos e, tempos depois, transformou-se numa das constelações mais representativas da primavera — estação do ano que começa em 23 de setembro no hemisfério Sul.

(recontada por Walmir Cardoso)


imagem disponível em: http://www.ufrsd.net/staffwww/stefanl/myths/cassiopeia.jpg

Faxina Cultural

http://geocities.yahoo.com.br/faxinacultural
Sítio muito interessante. Apresenta vários artigos que traçam as diferenças entre cultura popularesca e a legítima cultura popular. Conteúdo crítico e, por vezes, levemente agressivo, mas, escrito por pessoas que sabem sobre o que estão falando.

Corpoéticos


imagem: cópia fotográfica de um cartaz intitulado "mujer desnuda" parte de uma coleção de cartazes da Heloísa Passini; o autor é desconhecido, pelo menos para mim.

Série de fotopoemas que estou construindo pensando as relações entre corpo, palavra e imagem. Há duas reflexões sob a pele desses poemas: o corpo é suporte da poesia, da arte? O artista se revela em corpo e obra? São conceitos sobre os quais já tenho refletido e trabalhado em oficinas de liberação da linguagem criativa que envolvem a libertação do gesto. A fotografia petrifica um ângulo/momento do corpo - que é mutante, enquanto no poema a palavra, também mutante, assume novos sentidos a cada nova leitura. O corpo é livro? O poema tem corpo? Como em quase tudo que escrevo e, mais recentemente, fotografo, me interessa mais descobrir perguntas do que respostas. Como diria Lispector: " Se eu tivesse que dar um título à minha vida, seria: à procura da própria coisa."

sábado, 5 de fevereiro de 2005

Sem cera*


Não me quiseram
sem cera
(faz falta um acabamento adequado)
sem meias-palavras,
sem meias-medidas,
inteira
não me quiseram.

Se eu não quis
entrar na fôrma
assumo que
fiquei disforme
(mais borrão que padrão).

Se eu não quis
dançar
conforme a música
foi só pelo desejo
de coreografar
a minha vida
pelas batidas
do meu próprio tambor.
(Eu ouço a melodia do meu corpo).

Se eu quis
a contramão,
o contra-senso
a contradição
foi só pra viver sem cera.
Sincera,
não me quiseram.

Sandra R. S. Baldessin

* À flor do verso, 2001.
Imagem: Outras de mim. Série autofotográfica. Edição através do programa Photo Impression 5.1; fevereiro de 2005.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2005

O tempo da flor


Recentemente, li um dos textos mais instigantes, dentre os milhares já lidos nesse meu percurso de leitora: Cronópolis, escrito por Baillard. No livro, o autor fala de uma cidade na qual todos os homens vivem sob a obsessão do tempo. O controle dessa cidade é exercido pelo Ministério do Tempo, que substituiu qualquer outra forma de governo; a autoridade mais importante é, justamente, o Ministro do Tempo que, junto com seus assessores, os programadores do tempo, são os senhores absolutos da cidade.
A obra de Baillard, que, valendo-se de uma metáfora traça um retrato futurista das cidades, acaba por nos mostrar que esse futuro já se tornou presente. E não estamos falando apenas das grandes metrópoles, das capitais. Em todos os lugares, observamos as pessoas subjugadas pela onipotência do Tempo e, como reação, cada vez mais apressadas.
Uma das expressões que ouvimos com mais freqüência: “como o tempo passa depressa, a gente nem vê o tempo passar!”, esconde um grande problema. Não ver o tempo passar, no contexto em que temos vivido, mostra que o tempo está engolindo o espaço, as pessoas, os momentos de que a vida é feita.
Isso significa que deixamos de ver, ouvir, cheirar, sentir o sabor, tocar a vida que está acontecendo sempre no ‘agora’. Esse agora que nos surpreende distraídos, com pressa de chegar além. Pensando nisso tudo, e num famoso ditado popular, fiz uma descoberta: a pressa é inimiga da percepção! A correria nos priva do deleite oculto, à espera do nosso olhar, nos detalhes do cotidiano. Deleite significa entregar-se a um prazer intenso; a palavra guarda, na sua origem, a imagem do bebê sendo amamentado, desfrutando o aconchego e a provisão alimentar oferecidos pelo seio da mãe.
Tive a oportunidade de colher os depoimentos de alguns dos nossos orquidófilos, para escrever os textos da Agenda Rio-clarense 2005, que traz um resgate da história da orquidofilia em Rio Claro. São homens que aprenderam o “tempo da flor”. A orquídea não se apressa em desabrochar. Por longos anos, ela acalenta o coração do seu criador com a promessa de sua futura beleza.
A vida não é uma fábrica, tampouco nós, somos operários pressionados à produtividade. A vida é o seio da mãe, aguardando a nossa fome, o nosso desejo. É preciso que tenhamos tempo de aprender a lição da orquídea.

Sandra R. S. Baldessin

*fotografia de uma bela catassetínia, espécie criada no Orquidário Perazolli, cujo proprietário, Egel Perazolli, é considerado o Mago do Catasetum.