quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005

Cibernômades


A expressão “cibernômade” me veio repentinamente. Na verdade, eu estava refletindo sobre outro tema; um texto muito especial do historiador e psicanalista Luis Querolim, do qual partilho um breve trecho:

“O homem pós-moderno é alguém que progressivamente dá-se conta que a vida não é útil, mas, pelo contrário absolutamente última...[esse] homem passa a admitir o nomadismo de sua existência. Queremos crer que desse nomadismo deva nascer um senso ético baseado, não na promessa divina, ou na promissão científica/industrial de bem estar, mas num senso ético ancorado na efemeridade própria do viver, nos percalços do subsistir, enfim no desamparo... [esse homem] está descobrindo que a sua saga é des/arraigar-se, e que a vida é uma grande aventura, única, saborosa, acre.”

O ancestral nômade, o caçador-coletor, ainda sobrevive costurado à nossa pele e sua nostalgia do desarraigamento pode ser cumprida no ciberespaço.
Vivemos um momento de vertigem. Momento que se prolonga no tempo, sem as margens do espaço. O fim da linearidade espacial, que definia nosso sentido geográfico de “aqui”, acena com a possibilidade de existirmos para além de nós mesmos.
No ciberespaço experimentamos um “agora” que se expande ao mesmo tempo em que se cristaliza, abrangendo o presente infinito. Vivenciar esse infinito é um desejo atávico do homem, muito bem traduzido por Bataille em sua obra “O Erotismo”:

“Se alguém me perguntasse o que somos, o que o homem é, responder-lhe-ia: é a abertura a todo o possível, é expectativa que nenhuma satisfação material poderá apaziguar”.

Cibernômades, retomamos a jornada do ancestral caçador-coletor, abertos a esse “todo possível” de que fala Bataille. Habitamos mundos que, supostamente, prescindem do corpo, pelo menos enquanto matéria. Somos imagem que se projeta e, como tal, está sujeita à apropriação dos interlocutores e conseqüentemente às mais variadas interpretações. Sobretudo, o cibernômade é alguém envolvido num processo lúdico de invenção, de autopoiese.
Fiz questão de usar o advérbio “supostamente”, pois, na verdade não ocorre a ausência do corpo, apenas aquilo que chamarei de não-presença, ou a propriedade de não-estar-estando. O que esse cidadão do ciberespaço teria em comum com o caçador-coletor nômade?
Acredito que uma espécie de liberdade de ser o mesmo sendo outros; observem que não estou me referindo à possibilidade de sermos outros sendo o mesmo, o que redundaria, apenas, na criação de novas identidades. Refiro-me à forma como somos coletados, lidos, pelos demais cibernômades que se apropriam de nós. A partir dessas leituras, sujeitos-processo que somos, vamos nos desconstruindo e reconstruindo. Fico encantada ao recordar que Fernando Pessoa, em seu ofício p(r)o (f) ético, nomeou esse ato como “mecanismo de outrar”!
O caçador-coletor se movimentava constantemente em busca de alimento; e nós, cibernômades, o que buscamos?

Sandra R. S. Baldessin

imagem: el nomade. disponível em: www.andalucia.com/ flamenco/camino/home.htm

4 comentários:

Pedro Wendl Prasil disse...

lindo texto, que termina com uma mensagem/pergunta bombástica....
eu amaria divagar sobre este conceito, depois te conto o que saiu da minha cachola, rsss, pq acho um tema de impressionante visão.

XXXX YYYY disse...

Interessantíssimo, Sandra.
Seu texto vem ao encontro de coisas que me inquietam e sobre as quais me depruço com frequência.
Vou guardá-lo para futura reflexão.

Sandra Baldessin disse...

é isso, Pedro, eu sempre tenho perguntas... já as respostas...
fico feliz que tenha gostado do texto, mais uma divagação. queor que vc me conte o que saiu da sua cachola...rsrs
besito

Sandra Baldessin disse...

a mim também, essas coisas inquietam, me chamam à reflexão.
obrigada pela leitura e comentário.
besito