sábado, 19 de fevereiro de 2005

TECENDO LEMBRANÇAS


Pajarita. Era assim que abuelita me chamava. Talvez, porque eu fosse inquieta e desejosa de espaço, como os pássaros. Eu me entendia mesmo pajarita, e meu ninho ficava na enorme mangueira que enchia o quintal com sua sombra.
Por mais que me proibissem, eu adorava subir na árvore e me esconder em sua ramagem. Lembro-me do cheiro das folhas e da aspereza dos galhos, lembrança tátil, olfatável, que me devolve a infância.
A sensação de amanhecer no silêncio da árvore. Antes que o dia raiasse, abuelita já estava na cozinha avivando as brasas do fogão de lenha para preparar o café. A minha festa, particular e solitária, consistia em acordar antes que ela se levantasse, escuro ainda, e subir na mangueira, desfrutando aqueles preciosos momentos nos quais me parecia que o mundo não fora inaugurado.
Muitas vezes, eu adormecia novamente, equilibrada nos galhos mais altos, para ser despertada pelo sol que se insinuava, soberano, por entre as folhas verdescuras, impondo sua luz.
Outras vezes, descia e, sorrateiramente, me esgueirava para a cozinha com a intenção de dar um susto em abuelita, que sempre fingia surpresa, não me negando o prazer da brincadeira.
A sua reprimenda ficava esquecida no calor do abraço, aconchegante como a presença da árvore. Os braços fortes dessa mulher também foram o meu ninho.

Saudade que não dói*

O fogão de lenha,
o aroma de café
fresquinho,
o doce de goiaba;
as cantigas
que entoavas,
as hortências,
a empanada,
o afeto sem fronteiras;
as mãos sovando
a massa,
o galo cantando,
a manhã nascendo.
E nós
(pães fermentados
pelo teu amor)
crescendo !

*Poema do livro "À flor do verso", 2001.
imagem: Pajarita, 1963.

2 comentários:

lisias paiva disse...

post lindo e olha que saudade dói, só não tem remédio!

Sandra Baldessin disse...

obrigada, lisias, pela visita e pelo comentário.
besito