sexta-feira, 4 de fevereiro de 2005

O tempo da flor


Recentemente, li um dos textos mais instigantes, dentre os milhares já lidos nesse meu percurso de leitora: Cronópolis, escrito por Baillard. No livro, o autor fala de uma cidade na qual todos os homens vivem sob a obsessão do tempo. O controle dessa cidade é exercido pelo Ministério do Tempo, que substituiu qualquer outra forma de governo; a autoridade mais importante é, justamente, o Ministro do Tempo que, junto com seus assessores, os programadores do tempo, são os senhores absolutos da cidade.
A obra de Baillard, que, valendo-se de uma metáfora traça um retrato futurista das cidades, acaba por nos mostrar que esse futuro já se tornou presente. E não estamos falando apenas das grandes metrópoles, das capitais. Em todos os lugares, observamos as pessoas subjugadas pela onipotência do Tempo e, como reação, cada vez mais apressadas.
Uma das expressões que ouvimos com mais freqüência: “como o tempo passa depressa, a gente nem vê o tempo passar!”, esconde um grande problema. Não ver o tempo passar, no contexto em que temos vivido, mostra que o tempo está engolindo o espaço, as pessoas, os momentos de que a vida é feita.
Isso significa que deixamos de ver, ouvir, cheirar, sentir o sabor, tocar a vida que está acontecendo sempre no ‘agora’. Esse agora que nos surpreende distraídos, com pressa de chegar além. Pensando nisso tudo, e num famoso ditado popular, fiz uma descoberta: a pressa é inimiga da percepção! A correria nos priva do deleite oculto, à espera do nosso olhar, nos detalhes do cotidiano. Deleite significa entregar-se a um prazer intenso; a palavra guarda, na sua origem, a imagem do bebê sendo amamentado, desfrutando o aconchego e a provisão alimentar oferecidos pelo seio da mãe.
Tive a oportunidade de colher os depoimentos de alguns dos nossos orquidófilos, para escrever os textos da Agenda Rio-clarense 2005, que traz um resgate da história da orquidofilia em Rio Claro. São homens que aprenderam o “tempo da flor”. A orquídea não se apressa em desabrochar. Por longos anos, ela acalenta o coração do seu criador com a promessa de sua futura beleza.
A vida não é uma fábrica, tampouco nós, somos operários pressionados à produtividade. A vida é o seio da mãe, aguardando a nossa fome, o nosso desejo. É preciso que tenhamos tempo de aprender a lição da orquídea.

Sandra R. S. Baldessin

*fotografia de uma bela catassetínia, espécie criada no Orquidário Perazolli, cujo proprietário, Egel Perazolli, é considerado o Mago do Catasetum.

8 comentários:

Ricardo de Almeida Rocha disse...

sabe, nao faz uma hora estava comentando com alguém que pra mim é um mistério a net, celular, automaçao etc etoda essa tecnologia de ponta que veio pra apressar a produtividade e, daí se supoe, sobreria tempo pras pessoas, que hoje, mais que qualquer outra épooca que vivi (nao tantas assim...) "nao tenho tempo", "estou com muita pressa" e assemelhandos saun os bordoes gerais e lugares-comuns

Sandra Baldessin disse...

é verdade, Ricardo. Mas, sempre é tempo de desfrutar o tempo ao invés de investir nele.

XXXX YYYY disse...

Um primor, Sandra. Aliás, como tudo que você escreve. Texto culto, sem ser pedante. Reflexões plenas de sensibilidade.
"A pressa é inimiga da percepção". Perfeito! Frase pra guardar e não esquecer jamais.

Beijos!

Sandra Baldessin disse...

obrigada, querido. você usou a palavra "primor", que eu adoro.
beso

Eliana Mora disse...

Calou-me muito bem esta matéria em que falas sobre a leitura "Cronópolis". Não é de agora que bate este tipo de reflexão, não é? E o exemplo da flor é profundamente marcante. E no mais - pensar. No que podemos fazer - por nós [ainda].

Beijos
Eliana

Sandra Baldessin disse...

na verdade, Eliana, eu li o livro e fiquei impactada; depois, quando fiz o trabalho com os orquidófilos, ouvindo as declarações e, principalmente, observando o modo de vida deles (quase todos com mais de 70 anos e pelo menos 5 deles com mais de 80) eu fiz a associação com o livro.

Sophia Abelha disse...

Primeiramente parabenizo-lhe pelo belo artigo!
Por gentileza, estou a procurar o respectivo livro citado mas não o encotro em loja alguma, nem virtual, existe alguma edição em português? Qual o nome completo do autor? Grata
larozapc@terra.com.br

Sophia Abelha disse...

Primeiramente parabenizo-lhe pelo belo artigo!
Por gentileza, estou a procurar o respectivo livro citado mas não o encotro em loja alguma, nem virtual, existe alguma edição em português? Qual o nome completo do autor? Grata
larozapc@terra.com.br