domingo, 28 de setembro de 2008

Poesia e a dimensão erótica da vida

Rating:★★★★★
Category:Other
Platão, o filósofo grego, explica que o nome anthropos (homem) significa “aquele que contempla o que vê”. Contemplar é extrair daquilo que é visto algo que está além do objeto: encontrar um sentido. O fascínio do poema, sua sedução, reside, justamente, na possibilidade de criar e/ou encontrar esse sentido.
Se, de um lado, temos o homem faminto por sentido e, do outro, há o poema que se abre ao desejo desse homem, fica patente o poder erótico da poesia. E, aqui, não cabe falar em poemas eróticos, pois não há poesia que não seja erótica.
O ritual erótico que resulta no poema começa com a paixão do poeta pela palavra, pelo desejo que permeia sua relação com a linguagem. Só o poema pode revelar toda a sensualidade de um idioma. Só a Poesia possui as palavras com tamanha ânsia, a ponto de arrancá-las ao controle da sintaxe, desnudá-las da roupagem da gramática e conduzi-las, num crescendo, ao gozo inevitável: o poema.
Toda poesia que mereça esta designação é erótica, no sentido de que nasce da pulsão por expressar o inominável, que, por sua intensidade, é efêmero como os sentidos pressentidos no poema, como a própria paixão.
A poesia é sempre erótica, pois o poema – entidade resultante da orgia entre o poeta e a palavra – é como o corpo que surge no momento da cópula, um outro corpo que não pertence a nenhum dos amantes, existe apenas no breve intervalo do êxtase.
Não se trata de o poema ter ‘conteúdo erótico’, mas de que sua fala se articula a partir de uma dimensão erótica presente no poeta e, mais tarde, no leitor.
Discute-se muito a carência de público leitor para a poesia. Tenho cá minhas teorias sobre isso: embora vivamos numa sociedade extremamente erotizada, tememos assumir nossa dimensão erótica, que não se sujeita à sintaxe desumanizante de quaisquer moralismos. Por isso, a grande maioria das pessoas não é capturada pela sedução do poema, por sua carne latejante e plena de sentidos que estão além da superfície porosa das palavras.
Encerro essa divagação com um poema de minha autoria que, espero, diga mais que que toda essa prosa:

Psicopoema

encerrado no hospício
das palavras o
poeta
remexe as entranhas
do seu mais íntimo
dicionário
busca o verso
no caldo químico dos
próprios hormônios e
reencontra a si mesmo
na plenitude orgásmica
do poema

Sandra Baldessin



Imagem: Poema Visual de minha autoria, que integra a exposição Flux 2008.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Nauro Machado

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:A poética endógena de Nauro Machado
“Ser poeta é duro e dura
e consome toda
uma existência.”
Nauro Machado

Nesse quinto artigo da série Justiça Poética quero trazer à memória o nome do poeta maranhense Nauro Machado. Sua obra já foi analisada com brilhantismo pelo também poeta e ensaísta Ricardo Leão, portanto minha intenção é repassar impressões pessoais sobre a poética de Nauro, muito mais ligadas ao efeito que sua poesia produz em mim do que a teorizações literárias.
A poesia, em Nauro, não surge como o fluxo de inspiração irradiado de um poder divino (theia dunamis). Antes, suas entranhas são seu oráculo. Sua poética é endógena e, particularmente, impressiona-me o fato de que alguns poemas parecem surgir de uma auto-vivissecção, como se Nauro dissecasse as suas emoções, seus questionamentos sobre a vida, o ser e a linguagem, traduzindo-os em versos plenos de angústia: “Pode alguém perceber alguma coisa/ do que a vida vai sendo, inconsciente?”
Assim, parece-me que a poesia de Nauro padece da angústia de renomear o homem e a vida na esperança, que já nasce frustrada, de recuperar algo que se perdeu sem nunca ter existido: “Por que, então, brado aos céus deste infortúnio,/estou passado no presente que une/o meu futuro ao em mim perdido e morto?”
É preciso ressaltar, ainda, a musicalidade de Nauro Machado, a propriedade de bailar que seus versos possuem. Os poemas desenham imagens à moda dos gestos precisos de uma bailarina. É tudo tão denso, e ao mesmo tempo tão impalpável, que o leitor mais distraído corre o risco de ser lançado ao desenlace do poema antes de captá-lo em sua inteireza, percebê-lo em sua autenticidade orgânica.
Justiça seja feita: Nauro Machado representa o que de melhor há na poesia brasileira contemporânea, como tão bem expressam os versos de A rocha e a rosca: “ Em ser outro já decido/o que me faz de nenhum:pisar a dor do resíduo/no elemento mais comum,/negando-me ao indivíduo/no povo completo em um.”

Sugestão de Leitura:

Nau de Urano – Antologia de Sonetos. Ed. Siciliano 2002;
Melhores Poemas – Seleção de Hildeberto Barbosa Filho. Editora Global, 2005;
Pão maligno com miolo de rosas. Edição do autor, 2004;
A rocha e a rosca. Edição do autor, 2003.


Imagem: Escaneada de livro do autor.


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Laços (Ties) - Project: Direct




Um curta-metragem delicado, dirigido por Flávia Lacerda. O roteiro é de Adriana Falcão. O filme ganhou o concurso internacional de curtas do youtube.

Pra que tantas bibliotecas?

Category:   Other/General

Pois é, deve ter sido essa a pergunta que o prefeito de São Paulo, Gilberto kassab (DEM) fez a si mesmo, ou aos seus "aspones", antes de assinar o decreto 49.172, que extinguiu quatro tradicionais bibliotecas públicas, presentes na capital do estado. Nesse triste obituário constam os seguintes nomes:

- Biblioteca Infanto-juvenil Chácara do Castelo, transformada em Centro de Conservação de Acervo; atenção: é pra conservar, não pra democratizar.
- Biblioteca Infanto-juvenil Arnaldo de Magalhães Giácomo, que, com uma só canetada, virou Centro de Apoio Educacional: engraçado, não é para isso mesmo que servem as bibliotecas?
- Biblioteca Infanto-Juvenil Zalina Rolim, num passe de mágica político virou Casa de Cultura e Convívio da Vila Mariana: ora, desde quando biblioteca não é, justamente, casa de cultura e convívio com os melhores amigos dos homens, os livros?
- Biblioteca Infanto-Juvenil Cecília Meireles (a poeta deve estar se revirando na tumba), transformada em Centro de Memória e Convívio da Lapa.

Num país com mais de 40 milhões de analfabetos funcionais, o Kassab deve ter achado coerente fechar bibliotecas! No Brasil, temos apenas 4.800 bibliotecas para uma população de 170 milhões. Isso significa que há uma só biblioteca para cada 35.000 pessoas.
Pra entender melhor o que esses números representam, basta dizer que, na França, são 24.000 bibliotecas para 60 milhões de habitantes. Bem, por isso eles deram ao mundo Morin, Deleuze, Sartre, Foucault, Bachelard, Lyotard, Lévy, e... Podem acreditar, essa lista é imensa!
Para quem gosta de matemática, a proporção de bibliotecas no Brasil, em relação à França, é de 1/14 (7,01%). Essa conta também mostra outra discrepância: são 5.507 municípios no país, o que significa que tem muita gente sem acesso, a "galera dos sem-livro".

Kassab justificou a canetada afirmando que "não havia público" para essas bibliotecas. Ora, pra bom entendedor, um pingo é letra. Não tem público, pois toda retórica do projeto "São Paulo, um estado de leitores", criado no governo de Geraldo Alkmin, de quem Kassab era vice, não passou disso mesmo: retórica para justificar os gastos com propaganda institucional. Se o programa tivesse funcionado, não assistiríamos, agora, ao velório das bibliotecas!

Sandra R. S. Baldessin



terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Discurso do oceano




Nas férias desse ano, aproveitamos para vistar a família em Joinville. Como um bônus extra, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente a Géh, amiga do mult, e visitar sua exposição. Depois, estivemos numa das mais belas praias do país, Mariscal, localizada em Bombinhas, capital mundial do mergulho ecológico. Essa região do litoral catarinense tem praias para todos os gostos, desde aquelas mais agitadas, passando pelas prais mais tranquilas, mas com perfeita infgra-estrutura turística, até as praias desertas, às quais temos acesso pelas trilhas na mata. Mariscal, onde ficamos, é protegida por leis de preservação e se constitui num paraíso do olhar.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Balanço de leitura

 

No início de um novo ano é comum ouvirmos o termo “balanço”, referente às análises sobre o desempenho financeiro das empresas e do comércio. A idéia desse artigo se desencadeou exatamente por conta da palavra balanço que, para mim, evoca os poemas do livro de Drummond: “Cadeira de Balanço”. Assim, oscilando entre o poético e o analítico, resolvi fazer um “balanço” das leituras realizadas em 2007.

 

Não tenho dúvidas em afirmar que, o melhor saldo de 2007 foi a descoberta da poesia de Nauro Machado, poeta vigoroso cuja obra merece ser mais divulgada por esses brasis. De Nauro, destaco o poema A Rocha e a Rosca, considerado por Ricardo Leão, teórico da literatura, como o “discurso épico do ser”. Eis um fragmento: “Na eternidade eu me duro:/me aniversario presente,/ para sempre a sós, no escuro,/ de mim próprio a semente,/ sem passado e sem futuro,/ para sempre, por ausente.”

 

Cito, dentre os melhores, o livro da amiga portuguesa Amélia Pinto Pais: “Fernando Pessoa: o menino de sua mãe”, ainda inédito no Brasil. Livro que revela a constância do amor da leitora por seu poeta do coração e seu desejo de ampliar os horizontes desse amor, transmitindo-o às crianças e adolescentes. Uma obra de rara delicadeza, na qual a autora assume a voz do poeta infante e conta sua história. Do livro de Amélia destaco o trecho final da carta endereçada ao poeta: “Está aqui, entre seus amigos, unidos pela língua que foi sua pátria, amigos seus que tantas alegrias lhe devem – e que lhe querem muito bem -, agradecendo-lhe por ter existido e se ter outrado, múltiplo e plural como o universo!”

 

Já no final de 2007, o Gil Uryn, amigo querido, presenteou-me com “A alma imoral”, do rabino Nilton Bonder. Prosa instigante que ressignifica os conceitos de corpo e alma, enquanto discute a temática da traição. Espero que o excerto “abra o apetite” pela leitura: “Resta uma pergunta: se aquilo que é intrinsecamente correto pode assumir o status de um equívoco, seria possível imaginar situações sociais em que o intrinsecamente equivocado pudesse ser levado à condição de acerto?” Vale procurar a resposta no livro.

 

Duas releituras estão inclusas neste balancete: “O cavaleiro inexistente”, de Ítalo Calvino, e ”Secreta Mirada”, de Lya Luft.

A novela de Calvino é indispensável para os apreciadores da narrativa surreal. A releitura conduziu-me a entender melhor o quanto é viável existirmos pelas palavras, à margem da expressão corporal (vide o sucesso do chamado sexo virtual!). Atenção para o fragmento, que retrata o próprio ato da escrita: “Começa-se a escrever com gana, porém há um momento em que a pena não risca nada além de tinta poeirenta, e não escorre num uma gota de vida, e a vida está toda fora ... fora de você...e lhe parece que nunca mais poderá refugiar-se na página que escreve, abrir um outro mundo...”

 

 “Secreta Mirada”, por sua vez, resgata em mim o amor por Lya Luft, recordando-me que ela já foi bem maior do que seus últimos livros, desviantes, no contexto de usa obra literária. Ou, quem sabe, trata-se apenas do velho sentimento de sentir-se traída. A beleza desses versos redime qualquer mágoa: “talvez haja um amor me inventando,/ mas tão vago, nem roça/ as beiras da minha praia, concha breve/ e encolhida, não vou desenrolar/ o meu abraço. Quando achei que era tempo, não era:/ talvez este ondular entre meus ramos/ venha de alguma alheia primavera.”

 

Resultado do balanço: a leitura me embala, no aconchego das suas misteriosas engrenagens.

 

Sandra Baldessin

 

Imagem: La Lecture, de Pablo Picasso. Escaneado da Revista Mente e Cérebro, dez. 2006.

domingo, 6 de janeiro de 2008

O ABADE E O FRADEZINHO


Description:
Era uma vez um velho monastério, localizado no centro de um belo e frondoso bosque. Ali viviam muitos frades e cada um deles tinha uma missão diferente. Havia o frade porteiro, o frade cozinheiro, o frade médico, um outro que era jardineiro, um que exercia a função de bibliotecário, outro cuidava da horta; havia frade que dava aulas para os outros frades, frade farmacêutico e... Enfim, havia um frade para cada coisa e coisas a serem feitas por cada frade.
Uma coisa, porém, todos tinham em comum: levavam uma vida de oração e dedicação aos estudos. Como em todos os monastérios, o frade-que-manda era o abade.
Conta-se que o Bispo daquela região ficou sabendo, através de fuxicos do populacho, que o abade era meio tonto e não estava à altura de seu cargo. O Bispo decidiu fazer um teste para comprovar se o falatório do povo tinha algum fundamento. Mandou chamar o abade e propôs a ele três enigmas, dando-lhe um ano de prazo para decifrá-los. Eis os enigmas:
1) Se eu quisesse dar uma volta ao mundo, quanto tempo demoraria?
2) Se eu quisesse vender-me, quanto valeria?
3) Que coisa estou pensando, nesse exato momento, e que não é verdade?
O abade regressou ao monastério e, sentado em sua cadeira de frade-que-manda, começou a pensar, pensar, pensar e pensar... Pensou tanto que de suas orelhas já saia fumaça! Pensar lhe causava fortes dores de cabeça e o pior de tudo é que junto com as dores não surgiam as respostas: quantos mais ele pensava, mais confuso ficava.
Pois olhe que o abade chegou a entrar na biblioteca, pela primeira vez em sua vida, para mexer e remexer nos livros, tentando encontrar a solução dos enigmas. Pensa-que-pensa, e o tempo passando veloz, como é seu costume. Quando faltavam poucos dias para encerrar-se o prazo imposto pelo Bispo, o abade, desesperado, sentou-se debaixo de uma árvore.
Um jovem e humilde frade, cuja função era cuidar das ovelhas do monastério, passava por ali e viu o abade com a cabeça entre os joelhos, com todo jeito de estar angustiado. Aproximou-se, temeroso, pois nunca antes se dirigira ao abade, e perguntou se podia ajudar. O frade-que-manda contou-lhe tudo sobre os enigmas e o fato de não ter encontrado as respostas.
O fradezinho pastor disse a ele que não mais se preocupasse: ele mesmo responderia ao Bispo. Assim, no dia aprazado, apresentou-se diante do Bispo usando as roupas do abade e com a cabeça coberta pelo capucho, para não ser reconhecido.
O Bispo não perdeu tempo com conversa, já foi logo indagando:
- Se eu quisesse dar a volta ao mundo, quanto tempo demoraria?
Respondeu o fradezinho: - Se Vossa Reverendíssima caminhasse depressa como o sol, demoraria apenas vinte e quatro horas.
O Bispo pensou por um segundo e resolveu que a resposta foi satisfatória. Fez a segunda pergunta:
- Se eu quisesse vender-me, quanto valeria?
- Quinze moedas de prata. Respondeu prontamente o fradezinho pastor.
O Bispo olhou-o, intrigado: - Por que quinze moedas?
- Ora, Vossa Reverendíssima não pode desejar ser avaliado em maior conta que Jesus Cristo, que foi vendido por trinta moedas de prata!
O Bispo pensou com seus botões que, afinal, o abade não era tão tolo quanto diziam. Lançou o último enigma:
- Que coisa estou pensando e que não é verdade?
- Vossa Reverendíssima está pensando que sou o abade, mas na verdade sou o frade que cuida das ovelhas.
O Bispo ficou impressionado com a inteligência do jovem frade pastor e decidiu que, dali em diante, ele seria o abade e o frade-que-manda seria pastor de ovelhas.


Ingredients:
Colorin, Colorado! O conto está acabado. Quem quiser ouvir outra vez, feche os olhos e conte até três!

Directions:
Conto popular espanhol, recolhido por Francisco Hidalgo do projeto "Los abuelos Contadores" (Chile). Tradução: Sandra R.S. Baldessin

Imagem: Disponível em: http://jorgetello.blogspot.com/