domingo, 10 de julho de 2005

Experiências de aquecer o coração


Quando me perguntam porque parei de lecionar, embora apaixonada pela Educação, eu tenho uma resposta pronta, elaborada para essas situações: parei de dar aulas porque o ambiente escolarizado não é lúdico, não é sensível, não é palatável. O meu limiar de frustração foi atingido e seria improdutivo continuar. Porém, eu não abandonei o meio educacional, já que participo de vários projetos de formação de professores, principalmente do Ensino Fundamental, e todos com foco na mesma questão: o aprendizado da leitura, a desescolarização da literatura, a preservação da memória.


Entretanto, o envolvimento com projetos de educação não-formal são aqueles que têm me dado maior prazer e, segundo me parece, são facilitadores da inclusão social. Um dos trabalhos que, considero, tem rendido muitos frutos, foi realizado junto à população de um  bairro da periferia de Rio Claro, o Cervezão.


No bairro em questão, há muito migrantes nordestinos, e, uma pesquisa mostrou que mais de 60% deles vieram da região de Canindé, no Ceará. Na cidade de Canindé acontece uma das maiores festas religiosas do Ceará: a romaria de São Francisco; geralmente, os migrantes não têm recursos financeiros para viajar e participar das comemorações, ou levar os filhos que aqui nasceram para conhecer o lugar e as tradições respeitadas pela família. Ocorre, também, que muitas dessas famílias são marginalizadas, ou, com muitos sacrifícios, saíram dessa situação de marginalização e observamos nelas o desejo de ocultar das novas gerações, já nascidas no lócus urbano, a memória do processo migratório, muitas vezes dolorosa, porque estigmatizadora.


Assim, as crianças, adolescentes e jovens são privados de sua história familiar, sendo-lhes impossível elaborar o senso de pertencimento à própria família, ao entorno do bairro e, finalmente, compreender-se inserido no fluxo histórico da cidade onde vivem. A escola formal não aceita o desafio da inclusão desses jovens na história local e os processos de discriminação não são discutidos. 


Assim, no Centro de Convivência do Cervezão realizamos um projeto de educação não formal através do qual comunicamos e ensinamos acerca dessas tradições, onde procuramos fazer uma ponte entre as gerações que valorizam antigas tradições e os seus significados e a geração mais jovem. A experiência resultou no Museu de Rua "Canindé fica no Cervezão", coordenado por mim, utilizando belíssimas fotografias feitas pelo Aguiar (ex-sub-prefeito do bairro) que esteve em Canindé para participar da festa e aprender, e textos que escrevi com base em pesquisa e depoimentos dos moradores.


O museu de rua "Canindé fica no Cervezão" ficou exposto nos dias em que se realizou uma festa, nos moldes da festa cearense e, depois, percorreu as escolas da cidade, contando aos alunos um pouco da história do interior do Brasil. Durante a realização da festa, onde foi servida comida típica preparada pelas mulheres do bairro, fizemos uma espécie de sarau só com a declamação de córdeis, os repentistas se apresentaram, os sanfoneiros, etc.


Foi uma experiência de aquecer o coração! A Dona Eulália, de 83 anos, e vivendo em Rio Claro desde 1975, nos abraçava o tempo todo, feliz, parecia uma menina-moça. Observamos uma expressão orgulhosa nos rostos de todas aquelas pessoas, pois tiveram uma oportunidade de reconstruir sua auto-estima, que, claro, influencia positivamente na retomada da voz dessa comunidade, favorecendo uma transformação da realidade local.


Projetos como esse não poderiam ficar à mercê de questões políticas, correndo o risco de não ter continuidade apenas porque outros partidos estão no poder. Mas, infelizmente, isso acontece com frequência, não se levando em conta as prioridades sociais. Portanto, vejo a necessidade dos movimentos sociais investirem cada vez mais maciçamente em projetos de educação não formal, contribuindo para o desenvolvimento humano.


Sandra B.


*imagem: fotografia do estandarte de S. Francisco do Canindé, carregado por moradores do bairro.


 


 

6 comentários:

João Paulo Castanho disse...

puxa! você é polivalente, moça. A sua motivação me impressiona, deu pra perceber no dia da oficina na livraria. O Jader me disse que vc vai falar sobre "A terceira margem do rio" do Guimarães Rosa, será em Campinas ou Rio Claro? Eu gostaria de participar.
um abraço

Sandra Baldessin disse...

ah, dá um abraço no Jader por mim, ele deve ter recebido a minha mala direta; será em Rio Claro, mas, as vagas já foram preenchidas, o espaço não é muito grande, então foi preciso limitar.
obrigada por sua gentileza.

Jose Liborio disse...

Tem coisas que aquecem o coração, estimulam a mente e cobrem a eterna lacuna na educação... Tem horas que como quem deveria fazer não faz, então mãos à obra! Beijos!

Adair CJ. disse...

Deve ter sido uma experiência realmente aquecedora, Sandra.

Queria ter presenciado.

bjo

Sandra Baldessin disse...

é, Jose, se ficarmos esperando que aqueles que têm a obrigação de fazer realizem alguma coisa... já viu, as coisas só vão piorar. Acho que todos temos não a obrigação, mas a missão de contribuir de alguma forma. Eu acredito muito nos projetos de educação não formal. A velha idealista de sempre...
beso e obrigada pela visita

Sandra Baldessin disse...

sim, poeta, foi aquecedora e muito enriquecedora, também.