terça-feira, 7 de setembro de 2004

Caçador-coletor


Ele me abordou e perguntou o que eu estava lendo. Minha primeira reação foi de surpresa assustada: se um desconhecido cercá-lo na rua, imediatamente você se lembrará das estatísticas da violência. Todos os dias terás medo do teu semelhante acabou se transformando na tradução de ama a teu próximo como a ti mesmo. Aliás, esse mandamento tornou-se muito perigoso, a julgar pela quantidade de pessoas com problemas de auto-estima que circulam por aí.
O maltrapilho, carregando um saco nas costas, despertou a mais atávica lembrança da infância – a avó materna assombrando as netas com a figura do “homem do saco”, entidade demonizada que poderia nos causar um mal nunca definido com palavras. Olhei para o homem, esconjurando os fantasmas e respondendo à sua indagação: são poemas, poemas do Cláudio Daniel. Julguei que surpreenderia nele um olhar vazio, mas não.
Conheço muitos poetas, afirmou. Por algum motivo, talvez sua fluência verbal, não duvidei. “Gostaria de ler um poema”. É duro admitir, mas pensei que eu não gostaria que ele tocasse em meu livro, nós não temos idéia de como somos insuportavelmente normais e assépticos até nos depararmos com uma situação dessas. “Você lê o poema, então.” Ele deve ter lido a minha hesitação.
“sou tigre/entre tigres/com tiques/de mico-leão”. Eu li os versos e olhei para o meu interlocutor, que fez um gesto de assentimento com a cabeça coberta por um boné imundo e recitou uma bonita trova, que, infelizmente, não me lembro para reproduzi-la aqui. Foi-se embora, o andarilho, deixando-me inquieta.
Fiquei pensando se nesses homens não restou, intacta, a herança dos nossos ancestrais, os nômades caçadores-coletores e, se restou, o que coletam e caçam esses andarilhos, enquanto nós, os “normais”, corremos atrás do tempo, ajuntamos dinheiro, acumulamos estresse, morremos enfartados...
Além dos prejuízos à saúde física, a vida sedentária, centrada na propriedade e no saldo bancário, está nos roubando algo de muito valor, ligado à nossa vida mais verdadeira: já não somos mais caçadores-coletores, já não saímos à procura dos paraísos possíveis. É disso que estamos morrendo, de uma espécie de banzo que temos de nós mesmos, de nossa capacidade de sonhar e estar sempre buscando.
De repente, me ocorreu que, árvores, temos lançado as nossas raízes em terrenos muito áridos, onde não florescem versos nem sonhos. Aquele andarilho e o seu desejo de poesia revelaram o caçador-coletor oculto em mim, renovaram a tão necessária incerteza que pode motivar a busca daquilo que é essencial coletar.
De minha parte, espero ser o andarilho daqueles que lêem essa crônica.

Sandra R. S. Baldessin

*foto: mulher da tribo Xokleng (sul de Santa Catarina) últimos caçadores-coletores do país.




















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