sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Mil e uma noites

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Mil e uma noites

Uma homenagem a Nélida Piñon, escritora, entre outros tantos, que me ensinou a ter uma relação de desejo e prazer com a leitura.

Onde a pulsão de morte pede o gozo absoluto, a criação literária propõe o gozo estético; onde a pulsão pede o fim de toda a tensão vital, a literatura renova o jogo tenso entre a falta de sentido e o prazer da significação.
Maria Rita khell

Nélida me conta histórias sobre mim. Coisas incríveis que me aconteceram num tempo também criado por ela.
Primeiro, nós nos amamos. As mãos de Nélida são ela todinha... Mãos que aprendem o corpo da gente feito mapa de viagem. Ela nunca fecha os olhos, e quando goza eu descubro o endereço do éden.
Uma mulher como essa você não encontra: acontece na sua vida, como um cataclismo. E você fica como eu, sem antes nem depois, vivendo no presente decretado por ela. Não sei, mas penso que deve ser parecido com estar morto...Talvez, com não ter nascido ainda.
Depois, nua e aromática feito fruta que se come no pé, tece os meus enredos.
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Eu não sabia, mas nasci milhares de anos atrás. No momento mesmo em que passava pelo túnel do seu corpo, a minha mãe cantava, guiando-me na escuridão entre o nascer e o nãoser. Rompido o aconchego do útero, paga a oferenda de sangue, a mãe ensina-me o caminho do seu leite.
Menino, transito no horizonte. Tudo ali é fronteira e os bichos que me habitam correm livres pelos campos. Há música, sempre, nesse lugar que não é onde; e sou o instrumento - tudo me toca. Todos os cheiros são o meu cheiro e exalando-me assim, penetro a essência das coisas.
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Já vivi em cavernas. Inscrevi na pedra o texto do meu mundo. Atravessei a vida sem sabê-la continente. Persegui o sol, caçador e presa. Coletei sonhos quando não me concebia homem. Caminhei durante séculos e tive medo. Esse medo que sobreviveu nos genes dos meus filhos.
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Também houve um tempo em que fui árvore. Amantes se entregavam um ao outro sob a minha sombra e depois me comiam, traduzida na doçura dos frutos. Crianças subiam pelos meus galhos, as suas risadas perpassando minhas folhas. Oculto pelo meu tronco, um homem tocaiou seu próprio irmão - o sangue atraiçoado regou minhas raízes...
Os homens, limitados pelo dia, passaram por mim. Eu permaneci até que a civilização perdesse a visão do sagrado.
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Já fui rei, monge, escravo. Guerreiro, lutei as lutas dos outros e perdi só a mim mesmo. Tive mulheres, ou pensei que as tivesse – algumas me possuíram a alma, outras, subjugaram meu corpo. Aquelas que amei subjugaram-me a alma enquanto possuíam o corpo.
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Todos os dias amanheço de olhos fechados. Gosto de procurá-la com o nariz. É como acordar na floresta. Respiro-a profundamente. Depois de aprisioná-la nos alvéolos, estendo os braços; as mãos, tateando no escuro, traçam a cartografia do seu corpo-planisfério.
Concentro-me para ouvir os seus sons de seda e pedra. Só então vou abrindo os olhos, devagarinho. Nélida transborda da cama. Toda pele e letra.
Nesse exato momento percebo que sou todos os personagens nomeados por ela e descubro que a minha verdade é tão somente uma construção de linguagem.

Sandra R. S. Baldessin

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