sábado, 9 de outubro de 2004

Bal�Ral�

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Marcelino Freire
O Coreógrafo do BaléRalé

Ler Marcelino é penetrar uma cortina de lâminas: o brilho que seduz é o mesmo que retalha. Ser retalhado é, no mínimo, incômodo; expõe a pele-de-dentro, a vida que habita o sangue. Faz com que esse leitor, atingido pela violência implícita “mãe que é mãe não esquece nada que seja faca, nada que seja enxada,nada que seja prego, nada que seja parafuso perto da filha” fique ao alcance de si próprio, ao alcance de sua própria e insuportável dor.
Os contos de BaléRalé (Ateliê Editorial, 2003), expressam a concepção freudiana do unheimlich; onde, por heimlich se compreende tudo que é íntimo, natural, doméstico, sendo unheimlich o efeito de estranheza que atinge aquilo que é conhecido e familiar; é o caso do conto “Papai do Céu”: “Papai chegou e meu coração pulou (...) ele disse que eu devia tomar banho de novo que eu não tinha tomado banho direito (...) papai diz que a espuma tem um gosto bom como o gosto da nuvem (...) e pede para eu colocar a espuma na língua(...) eu não gosto quando a mamãe demora em Carapicuíba porque o papai fica um tempão fazendo espuma (...) não gosto do gosto da nuvem branca não gosto do gosto da espuma branca que papai espuma”.
Esse toque de estranheza gera uma profunda ansiedade, como se algo que preferíssemos ignorar, subitamente aflorasse, como se viesse à luz aquilo que deveria permanecer em segredo; Marcelino manipula a lâmina da escrita construindo uma relação entre texto e leitor baseada na revelação da sobrevivência como um ato de violência permanente.
A estranheza gerada pelo texto se torna mais patente quando nos deparamos com a patética personagem protagonista do conto “Sagração da Primavera”: “Ai. O meu desejo é leve e vai com ele. O desejo vai ao céu.”; a personagem que “faria miséria para ser feliz” até mesmo “...virar o homem do garoto da minha rua.” E Marcelino, através de sua imensa reserva de poesia embutida na aspereza do cotidiano, redime sua personagem com a única justificativa possível: “Meu amor cega como purpurina. Purpurina cega. Purpurina pura.”
Essa poesia, nascida de uma dor indizível, também surge soberana no conto E Sombra; pode ser lida no delicado Kyoto, apaixonado por uma fotografia: “Olhar como um abismo é olhado. Um vôo iluminado. O que é isso? Nunca viu Soraya de muito perto. Nem sabe se a carne existe.”
A beleza triste e insidiosa de BaléRalé cativa o leitor, por obra e graça de um dos talentos mais instigantes da nova prosa brasileira. Vale cada letra lida e a emoção toda que Marcelino Freire sabe tão bem despertar.

• Marcelino Freire nasceu em 1967, em Sertânia (Pe) e vive em São Paulo desde 1991. Publicou Angu de Sangue (contos, 2000); eraOdito (aforismos, 2002, 2a. edição) e BaléRalé (contos, 2003), todos pela Ateliê Editorial. Em 2002, inaugurou o selo eraOdito editOra, através do qual lançou a Coleção 5 Minutinhos, idealizada por ele mesmo e que ganhou, em 2003, uma versão infantil, a qual contou com o apoio cultural da Imprensa Oficial e foi distribuída gratuitamente em todo o país.

Nenhum comentário: