terça-feira, 8 de fevereiro de 2005

VERA*


“Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância (...)
A falsa, (...) que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.”
Fernando Pessoa


Hoje, sei que andei grávida de uma coisa que nunca nasceria. Dentro do uterocárdio, alimentei-o com as mais saborosas mentiras que uma mulher pode contar a um homem. Tentativa de fazê-lo vingar, como diziam os antigos sobre a violência que é sobreviver. Um tempo em que a vida me parecia líquida e certa. Nos labirintos do meu corpo ocultei-o e a vida se resumia na posse.
Hoje, despossuída, relembro a fome de avelãs que tive dele. Mas, a boca já não se enche d’água (nem os olhos) e nem preciso fingi-lo nesse outro que me abraça. Perdi o paladar e acho até que o dom de chorar de saudade. Embora quem me conhece afirme que eu ganhei a minha vida de volta. É uma gente discursiva e séria, devem ter razão.
Às vezes, só às vezes, eu me pergunto se eles não percebem que eu inventei um dublê pra viver essa tal vida recobrada. Ela vive a vida que um dia eu vivera, enquanto a observo se movimentando dentro do meu silêncio. É bonita essa mulher, decidida a cumprir o meu destino de boa moça. Empenhada em realizar sonhos que sonharam para mim.
Hoje, não sonho e nem acredito, mas ela não permite que ninguém se dê conta disso. Vestida com as minhas incertezas, me disfarço na sua eficiência. Já não há bichos, sequer estrelas, no corpo dela. Às vezes, só às vezes, eu me pergunto se ninguém percebe que eu não sobrevivi, que é falsa essa mulher que vive a vida que finjo viver.
Eu gosto dessa mulher que me inventei e que se presta aos papéis que eu não suportaria representar. Contabilizando tudo, devo a ela muito mais do que a harmonia na mesa de jantar e o gozo mentido. Não fosse ela tão conivente com as minhas mentiras jamais estaríamos aqui, nesse civilizado almoço familiar, comemorando os meus (dela) sete anos de felicidade conjugal.
Não fosse ela tão ordeira e consciente dos seus deveres, não me vigiasse tanto, o fogo latejante do corpo que partilhamos poderia novamente se alastrar. O fogo que faria derreter o chumbo das pernas e, luz, talvez revelasse que a flor do desejo ainda brota das entranhas, poderosas suas raízes de avelã. Sentinela, pensando no futuro, essa mulher elabora um pretérito-mais-que perfeito negando-me até mesmo o direito à memória.
Hoje, estão todos felizes, brindando o meu retorno à normalidade, ao universo das pessoas que sabem fazer exatamente o que se espera delas. O sorriso cicatrizado no rosto, ela-de-mim também levanta a taça, que, por estratégia de segurança, contém suco de uva. In vino, Vera.

Sandra R. S. Baldessin

*Coletânea "Capitus?" (inédita)
Imagem: Série de autofotografias "Outras de mim" (fev.2005)

10 comentários:

XXXX YYYY disse...

Bonito demais, envolvente demais, provocante demais. Não falo da provocação que objetiva o falo. Mas daquela que penetra na mente, que futuca a ferida, que dói uma dor vizinha do prazer.

Lalai ... disse...

parabéns Sandra. Lindíssimo (e melancólico) texto! Gostei muito e me identifiquei com este trecho em especial...

quero mais!!!

beijos!

Eliana Mora disse...

clapclapclapclapclapclap!!!!!!!!!!!!!!
Mil vezes - que texto, minha amiga!!!!!!
Muito, mas muito gosto não só do estilo, eu gosto do teor, e me identifico demais como que escreves, Sandra.

Amém!!!!!!!
El

Sandra Baldessin disse...

a gente escreve para isso: para o prazer e para a dor, somos todos uns famintos em busca de sentidos.
beso

Sandra Baldessin disse...

obrigada lalai, eu também gosto da sua escrita.

Sandra Baldessin disse...

agradecida, minha querida poeta e amiga.

XXXX YYYY disse...

Preciso inventar uma outra Vana prá viver os momentos que não gosto...

Adorei o texto, Sandra!!!

Sandra Baldessin disse...

vana querida, obrigada pela visita e pelo apreço; como diz a canção: " oa preço não tem preço..."
besito

Ricardo Junior disse...

Sandra,para você e seus amigos:
Plante seu jardim
Elektra
Significado do dia que você nasceu
Macarrão de Verão

Sandra Baldessin disse...

obrigada Ricardo