sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

Manon*


Janeiro, fim de tarde. “Em São Paulo, quando chove, chovem carros”. Um poeta assim dissera. Concentrou-se, tentando recordar o poema – “E a água retoma o seu curso original: Anhangabaú, Sumaré, Pacaembu. Ruas onde eram rios...” A chuva não o preocupava, afinal, quando fechasse a livraria só teria que subir dois lances de escadas e estaria em casa.
A moça entrou abruptamente. Procurando abrigo contra a chuva que se intensificara, pensou. Bonita. Os cabelos, escuros e ensopados, cortados bem curtos. Ela sacudiu a cabeça, como faria um cãozinho, para livrar-se do excesso de água. Virou-se e olhou-o, ao mesmo tempo que estendia os braços oferecendo-lhe a pasta que trazia nas mãos.
- O senhor é um alfarrábio? Quer dizer, alguém que compra livros e documentos antigos? É isso?
Reparou nas mãos dela, nos braços magros, na camiseta branca que a chuva tornara transparente, colada ao corpo. Agora os olhos. Verdes. “Abismos de sedução onde cantam sereias”. Leu neles uma ansiedade quase dolorosa. Fez menção de pegar a pasta que ela lhe oferecia; no momento em que ia tirá-la de suas mãos, ela afastou-se, apertando-a de encontro ao peito.
- Eu não quero vender. Só gostaria que fossem avaliados. Quer dizer, o senhor pode fazer isso, não?
- Sim, eu compro livros e documentos antigos; posso avaliá-los também. Mas, primeiro preciso vê-los. Aceita um café?
Não esperou que ela respondesse; guiou-a à uma aconchegante sala, à esquerda de onde ficavam as enormes estantes de madeira, repletas de livros.
- O meu nome é Manon. Todo mundo acha estranho; é a personagem de um livro, entende?
Ele entendia. Observou-a colocar a pasta numa das poltronas e pegar a xícara; sorveu o café aos golinhos, as mãos trêmulas. Cruzou as pernas, magras e longas. A boca, essa era digna do nome que ela carregava: os lábios cheios, feitos para as taças de cristal, para as mais finas porcelanas, para conjugar os verbos da paixão. Manon Lescaut.**
Dezoito horas. O livreiro desculpou-se e foi fechar a livraria, acreditando que com ou sem chuva o entardecer em Moema é um dos mais belos do mundo. Enquanto isso, ela abriu a velha pasta e retirou do seu interior uns vinte livrinhos, pequeninos, parecidos com aqueles evangelhos distribuídos nos hospitais. Chovia, ainda.
De repente, arrependeu-se de sua empreitada; jamais deveria ter vindo, coisa de gente desesperada. Nunca teria coragem de vender o seu tesouro; experimentou uma angústia enorme só de pensar nisso: um passarinho batendo asas, loucamente, no interior do seu peito. Melhor morrer de fome, pensou.
As mãos apressadas recomeçavam a guardar os livros quando ele retornou e viu alguns dos livrinhos espalhados sobre a mesa; teve um sobressalto. Será? Percebeu-a assumir uma posição defensiva, olhar verde-trincheira. Ele entendeu, num relance, porquê dizem que a alma é caçada pelos olhos.
- Deixe-me vê-los... por favor! E já segurando um deles: - Sabia que existiam, mas nunca pensei que um dia os veria. O “Paraíso Perdido,” de Milton, a edição ilustrada lançada no século XVIII! Você tem todos os volumes? Eu não posso comprá-los, é claro, tudo que tenho não bastaria para tanto; mas posso falar com alguns colecionadores, muito discretamente, posso colocá-los no mercado.
No instante mesmo em que falava soube que ela não se separaria deles. Observou-a segurando os livros, seu toque era quase uma carícia. Viu a paixão acompanhada do seu mais fiel seguidor: o medo de perder. Ela balançou a cabeça numa negativa muda. Compreendeu-a perfeitamente.
Chovia. Indicando uma porta lateral, apertou a mão que ela ofereceu na despedida. “Em São Paulo, quando chove, chovem apocalipses de quintal.”
Manon aconchegou a pasta contra os seios, delicadamente. Lembrou-se que ainda lhe restava uma segunda opção. Cumpriria o destino de seu nome. Se tudo na vida tem preço, então seria justo fazer do corpo moeda sonante. Sob a chuva, São Paulo se lhe afigurou um imenso bordel.

Sandra R. S. Baldessin


Poemas citados: Quando Chove, Frederico Barbosa. (in:Contracorrente, 2000); Fragmento de Coelho Neto;

* Coletânea "Capitus?", inédita. .
** Manon Lescaut, romance francês, escrito por L’ Abbé Prévost no século XVIII e transformado em ópera por Puccini; Maria Callas, a Diva Gloriosa, realizou a interpretação mais aclamada da prostituta francesa.
Imagem disponível em: www.karenscollectables.co.uk/book_manon_lescaut.JPG

12 comentários:

XXXX YYYY disse...

Muito bom conto, Sandra. Gostei.
Beijão.

XXXX YYYY disse...

Saboroso! Tentei achar adjetivo mais adequado, mas foi em vão.
É para ler saboreando caracteres, espaços, palavras.

Eliana Mora disse...

Eu só posso avaliar o que escreves - sobre Manon - ou tudo.
Um brilho nas palavras, um sabor de 'quero ler mais'.
Da ópera que escolheste - nem se fala. Não precisa.

Onde estão os 'publishers' deste país????
besos

Sandra Baldessin disse...

obrigada, querido; eu tenho um carinho singular por essa história, talvez pela personagem que faz pano de fundo: Sampa.
besito

Sandra Baldessin disse...

adorei esse adjetivo, saborear é saber!
besito

Sandra Baldessin disse...

obrigada, poetamiga! esse conto é muito pessoal: fala das minhas grandes paixões.
besito

Adair CJ. disse...

Gostei do texto, Sandra.
Tão difícil escrever contos, eu acho. E vc se saiu bem !

Adair

Sandra Baldessin disse...

obrigada Adair, como respeito muito seu trabalho (conheço seus poemas do Letra de Corpo) esse comentário tem maior valor.
realmente, escrever contos é um desafio, principalmente porque eu gosto de trabalhar com a proposta do anticlímax, mas, acho importante tentar. Você conhece o texto Decálogo do Perfeito Contista? É muito interessante.
besito

Lalai ... disse...

lindíssimo... poético... parabéns Sandra!!! e gostei da riqueza de detalhes, pois vi cena por cena, vi os olhos de Manon, vi a expressao maravilhada do alfarrábio ao ver a coleçao que ela carregava,a chuva...

adorei!

beijos

Sandra Baldessin disse...

oi flor-de-lalai, obrigada pela visita e pelo comentário, eu gosto desse conto.
besito

Herbert Farias disse...

Essa bricolagem lúcida, esse texto limpo, essa palavra ágil. Não dá pra nao voltar aqui.
Abraço entusiasmado,
Herbert

Herbert Farias disse...

Onde encontro esse Decálogo? Leitura interessante.
Abraço surpreso,
Herbert