segunda-feira, 31 de janeiro de 2005

A invenção do sujeito-poema: saboreando Morin e Octavio Paz


O Cláudio (calex.multiply.com) tem nos proposto vários temas para reflexão, principalmente aqueles que enfocam a produção de conhecimento, virtualidade e a teoria da complexidade. O convite à reflexão vem acompanhado da publicação de textos de grandes pensadores e teóricos da educação e da filosofia. Recentemente, CAlex publicou um fragmento de uma pequena obra prima de Edgar Morin - Amor Poesia Sabedoria - que aborda questões ligadas ao fazer poético, à linguagem poética.
No texto, Morin fala num “estado poético” passível de ser produzido “pela dança, pelo canto, pelo culto, pelas cerimônias e, evidentemente, pelo poema”; eu diria que o estado poético definido por Morin envolve, ainda, o brincar. O filósofo foi muito feliz ao citar a afirmação de Hölderlin :"O homem habita a terra poeticamente." Infelizmente, muitos de nós desaprendemos esse modo de estar e ser no mundo.
Gosto da polêmica afirmativa do poeta mexicano Octavio Paz, quando diz que a prosa é uma violência contra a linguagem, filha do ritmo. Resumindo o pensamento de Paz, devido à “violência da razão” as palavras são arrancadas ao ritmo, embora nunca pela raiz, porque, nesse caso, a própria linguagem seria aniquilada. O poeta mexicano defende que o ritmo é anterior à própria fala e prefigura a linguagem, por isso não há povos sem poesia. Porque não há povos sem ritmo, a poesia surge como a “forma natural de expressão dos homens.”, configurando-se o “estado poético” de que fala Morin.
Num outro texto – “Os sete saberes”, Morin explica que a complexidade humana pode ser entendida através da literatura, e fala sobre o poder que a poesia tem de nos ensinar a qualidade poética da vida que se revela no cotidiano. Assim, quando Morin diz que “...a vida não deve ser uma prosa que se faça por obrigação. A vida é viver poeticamente na paixão, no entusiasmo” concorda com a premissa de Octavio Paz.
Quando Paz fala em “outredad”, definindo o termo como “...a percepção de que somos outros sem deixar de ser o que somos, e que, sem deixar de estar onde estamos, nosso verdadeiro ser está em outra parte. Somos outra parte...Onde estamos quando estamos aqui?” observamos, também, um paralelo com o pensamento de Morin, que divisa dois homens no homem: o prosaico e o poético.
Sob um aspecto, porém, Morin e Paz divergem e, talvez por razões ligadas à minha formação, tendo a concordar com o poeta. Para Morin, esse homem prosaico/poético tem como matéria prima uma única língua, e, a partir dela, produz duas linguagens diferenciadas, uma, conceptual, coerente, calcada na lógica do discurso; outra, rítmica, imagética. Segundo ele: “Se não houvesse prosa, não haveria poesia, do mesmo modo que a poesia só poderia evidenciar-se em relação ao prosaísmo. Em nossas vidas, convivemos com essa dupla existência, essa dupla polaridade.”
Paz refere justamente o contrário, ao afirmar que “a prosa cresce
em batalha permanente contra as inclinações naturais do idioma” e “resistindo à corrente rítimica”. Como quer Paz, “a prosa não é uma forma de expressão inerente à sociedade, enquanto que é inconcebível a existência de uma sociedade sem canções, mitos ou outras expressões poéticas.”
Assim como as palavras são seduzidas pelo ritmo e “retornam à poesia espontaneamente”, acredito que o homem busca regressar ao “estado poético”, a um estado de brincadeira onde se reconhece como quem verdadeiramente é: o outro. Esse outro é aquele que vive em “estado poético”, quer escreva ou não versos: “Alguém escreve em mim, move-me a mão,/escolhe uma palavra, se detém,/pende entre mar azul e monte verde,/com um ardor gelado/ contempla isto que escrevo/ ( ...) /não escreve a ninguém, a ninguém chama,/ escreve-se a si mesmo, em si se esquece,/ e se resgata, e volta a ser eu mesmo.”
Na beleza de seu poema Escritura, Octavio Paz confirma a tese de Morin e responde a pergunta subjacente à mesma, com a qual inicia o ensaio Amor Poesia Sabedoria: “Ensaiarei sustentar a seguinte tese: o futuro da poesia reside em sua própria fonte. Mas que fonte é essa?” A fonte é o homem que se permitiu regressar ao “estado poético” e por isso descobriu, como Paz, que “...se o mundo é idéia, sua maneira própria de existir não pode ser outra senão a linguagem absoluta: um poema...” Ouso dizer: um poema que reinvente o poeta e, nele, recrie o homo luddens – o homem que brinca, que “habita poeticamente o mundo”.
Edgar Morin, ao finalizar seu ensaio, afirma que a finalidade da poesia é nos permitir o regresso ao estado poético. Entendo que Octavio Paz define perfeitamente este estado do ser como aquele em que nos descobrimos poema, vivenciando nossa condição de sujeito-processo, de obra não acabada: “...o ser sempre em perpétua possibilidade de ser completamente e cumprindo-se assim em seu não acabamento.”
Esse homem, sujeito-poema, pode dizer com Morin: “sejamos irmãos porque estamos perdidos num planeta suburbano, de um sol suburbano, de uma galáxia periférica, de um mundo desprovido de centro. Mesmo assim, possuímos plantas, pássaros, flores, assim como a diversidade de vida, as possibilidades do espírito humano. Doravante, aqui residirão nosso único fundamento e nosso único recurso possível.”

Sandra R. S. Baldessin


Morin, Edgar. Amor Poesia Sabedoria. Bertrand do Brasil, 2003.
Morin, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. In: Pensando a Educação. Romualdo S. Dias. [org.] Annablume, 1997.
Paz, Octavio. Signos em rotação. 3ª. Ed. Perspectiva, 2003

* imagem: fotografia de Octavio Paz. Disponível em: http://www.lavitrina.com

3 comentários:

XXXX YYYY disse...

Sandra,

Muito bom texto. Abordagem perfeita. Não tenho os conhecimentos teóricos para debater a questão de que a prosa seja uma violência contra a linguagem, mas se Octavio Paz afirma isso considerando que a prosa é uma violência ao ritmo, eu sinto dificuldade em concordar, porque, do meu ponto de vista, não há linguagem literária sem ritmo, o que há é, na prosa, um ritmo diferente do ritmo dos versos.

Grande beijo.

Sandra Baldessin disse...

Fred, fico feliz que tenha gostado do texto; o que O. Paz diz é que a prosa resiste ás correntes rítimicas, mas, no fim, é seduzida pela cadência inerente à linguagem.
beso

Claudio "CAlex" Fagundes disse...



Se prestarmos a atenção na primeira conferência de Morin - no livro Amor Poesia Sabedoria - veremos que ele cita várias vezes a sua tese de homo-sapiens-demens. É sua tese sobre o amor.

Essa mesma divisão aparecerá na falsa dicotomia entre poético e prosaico.

O ele sublinha veementemente é a exacerbação do racional-prosaico que o mundo de hoje nos obriga.

É um movimento de retorno à origem, uma virtualização (aqui já entro com Lévy), a caminho de uma transcedência.