domingo, 24 de outubro de 2004

Senhora de todos os aromas


Chegando o mês de outubro. Se tudo fosse como antes, outubro certamente traria os feitiços olorosos de abuelita. Jamais sentir, novamente, aqueles aromas... Essa é a verdadeira saudade. Sólida ausência do desejo mais volátil.
Saudade que me conduz pelo nariz. A receita do licor, que depois de pronto cruzava o oceano, não poderia ser repassada para outra pessoa senão para a filha primogênita; essa jurava nunca compartilhá-la, nem mesmo com as irmãs mais novas.
Do líquido marrom dourado, espesso, resultante das alquimias olfativas de abuelita, não bebíamos sequer uma gota. Era vedado, a quem fazia, provar. As vizinhas surgiam de todo lado, atraídas pelo aroma. Abuelita assava intermináveis fornadas de pão, tentando, sem sucesso, diluir “aquele” aroma, mascará-lo, impedir que se alastrasse despertando um desejo que não seria satisfeito.
As botellas, contendo o licor preparado em nossa casa, seriam acondicionadas em caixas e enviadas para um país que conhecíamos de nome e por fotografias, apenas. Cruzando dezembro, e o imenso oceano, viriam as nossas botellas, repletas do licor preparado por mãos desconhecidas, numa cidade também desconhecida que, agora sei, é chamada pelo nome de um famoso poeta: Lorca. Ah, quando a rolha da garrafa era retirada!
Era a terra, traduzida em grãos do mais puro café; era muito mais: o cereal maltado espalhando na casa os campos milenares de Al Maheda, fertilizados pelo sangue dos cruzados espanhóis; mais do que isso: todas as especiarias mescladas com a doçura das mãos sagradas das mulheres da família: interpretação de deus.
Da botella, o licor derramava-se em pequenos cálices (eles ainda existem). Segurávamos os cálices com as mãos em concha, inspirando profundamente, várias vezes. Assim, aprisionávamos o mito nos alvéolos, desde bem pequeninos.
Depois, sorvíamos, ritualmente; se na ocasião houvessem recém nascidos na casa, também eles teriam a ponta do nariz e os lábios molhados com o líquido. Abuelita – senhora de todos os aromas - repetiria orações e sinais que condenaram à fogueira as suas ancestrais.
Outubro, hoje, é saudade. E mais: é a dor funda de arrancar um nome pela raiz e nunca mais vê-lo florescer. Consolo possível é saber que a lenda, perfumado extrato de nossa história, prevalecerá, fragrante, por todas as gerações.



Sandra R. Sanchez Baldessin


* Castillo de Lorca, cidade onde nasceu abuelita.

Um comentário:

joseane pedroso disse...

sandra que coisa mais linda é esse texto né?
eu simplesmente adoro ele (no bom portugueis) rss
beijos li