quarta-feira, 6 de outubro de 2004

Manifesto em prol da saudade


Sempre me intrigou a questão sobre como as idéias vão se associando em nosso cérebro até formarmos um quadro completo sobre determinadas situações, concretas ou não. Considero quase um desafio percorrer as trilhas do pensamento e descobrir onde foi plantada a “idéia-prima”, aquela que desencadeou todo o processo.
É bem verdade que já encontrei a explicação neurocientífica e anatômica, complexas demais para a leveza que se pretende nessa crônica, mas, o que me fascinou foi a denominação dada a essas áreas onde se realizam esses processos: áreas silenciosas do córtex; cujas funções, até agora, apesar de exaustivamente pesquisadas não estão bem esclarecidas.
Que me perdoem os cientistas por definir poeticamente os seus enunciados, mas, gostei da possibilidade de haver uma ilha silenciosa em nosso interior, local onde vamos colecionando impressões e expressões que, dependendo do nível de atenção que dispensarmos a elas, poderão ou não aflorar. Mas esse não é o tema dessa crônica, é só mais um elo dessa cadeia associativa.
O primeiro fato que culminou com o ato de escrever esse texto aconteceu há uns 20 dias atrás, quando recebi a correspondência de um grupo de Filosofia da Linguagem do qual participo; um dos artigos falava sobre as palavras que tendem a desaparecer, pelas mais diversas razões. E lá estava, listado entre as palavras em extinção, o nosso vocábulo mais original, que carrega em sua sonoridade a alma trans-racial do brasileiro: saudade.
Guardei a informação, à qual, uns dias depois, veio associar-se outra, coletada no ensaio “Tempos Modernos”, do jornalista José Roberto Sant’ Ana, publicado na recém lançada JC Magazine. Quase finalizando o texto, Sant’Ana pergunta: “De que terão saudade os adolescentes de hoje quando se tornarem adultos?”
A indagação do jornalista, provocativa, revela a doença, essa sim, muito grave, da qual o desaparecimento da palavra saudade é apenas o sintoma. A doença da falta de pertencimento, da fragmentação identitária, cujo principal agente causador é a desvalorização dos laços afetivos em todos os níveis, aliado a um fator predisponente que tem se apropriado da alma humana, da sua inventividade, suas convicções e paixões: o consumismo desenfreado. Consumismo que conduz ao desapego de tudo que possui valor permanente, portanto, não pode ser substituído e, como tal, não tem valor de mercado.
Sabemos que a vitalidade da linguagem humana revela a imagem do homem no tempo e que mudanças sócio-culturais acarretam mudanças lingüísticas, e não vice-versa. Considerando o tecido da vida social, quando ocorrem alterações a língua acabará por refleti-las, assim, o esvaziamento de sentido da palavra saudade é sintomático de um modelo de convivência social que não desejamos.
Encerro essa “conversa” com os leitores propondo-lhes que viajem a essa ilha interior silenciosa e de lá resgatem tudo que é digno do sentimento de saudade: as ruas, bares e praças de nossa cidade; as lembranças da hora do recreio, nas escolas; os bons livros lidos, os filmes inesquecíveis, as músicas que marcaram o compasso de nossas vidas, os amigos, os amores e as dores bem vividas. Quanto mais não seja, pelo menos para preservar o patrimônio histórico, cultural e lingüístico representado pelo vocábulo.


Sandra Regina S. Baldessin


*Publicada originalmente no Jornal Cidade de Rio Claro. Julho/2004
** Fotografia do lago da Floresta Estadual Edmundo Navarro de Andrade.

6 comentários:

Jorge Junior disse...

Será que chegaremos ao absurdo de sentir "saudade da saudade"?Triste pensar isso, pois é uma das palavras mais bonitas de nossa língua , sem similar em outras ...

Sandra Baldessin disse...

receio que sim, que percamos (as gera��es futuras) a no��o da saudade, a necess�ria nostalgia, a do�ura das relembran�as.
beso

Jorge Junior disse...

Poxa Sandra diz isso não .De onde vai vir parte da inspiração para nós que amamos a arte?

Sandra Baldessin disse...

n�o falo de n�s, da nossa gera��o;mas tenho medo que percamos o v�nculo identit�rio, o senso de pertencimento, essas coisas que nos fazem sentir saudade, banzo mesmo. � por isso que escerbi isso, como um alerta.

Jorge Junior disse...

Eu entendi concordo com vc.

. . . disse...

Tamb�m tenho medo disso...toda essa invers�o de valores, tornando as pessoas cada vez mais rob�ticas e menos humanas...

bjs