domingo, 12 de setembro de 2004

Não grite...Escreva!


Navegando pela internet, deparei-me com a versão virtual de um jornal francês, muito interessante: “Les militants de la solidarité” – “Os militantes da Solidariedade”, onde li a notícia que compartilho com os leitores, depois de traduzi-la, e claro, lançar sobre ela um olhar bem brasileiro. O endereço do sítio na rede, caso alguém queira ler mais: http://www.humanite.presse.fr
A notícia em questão relata que o escritor francês Ricardo Montserrat realizou um experiência inédita. Durante quatro meses, ele coordenou uma oficina literária no norte da França, em Roubaix, envolvendo 17 desempregados que tinham entre 17 e 53 anos. Do ponto de vista econômico, a região de Roubaix vem sofrendo muitos reveses; as grandes empresas que contribuíram para tornar próspera a cidade e aquela região – principalmente as indústrias têxteis – têm fechado as suas portas nos últimos anos, umas após as outras, transformando em desempregados dezenas de milhares de assalariados que, depois de algum tempo, não tiveram outra alternativa a não ser disputar o RMI (uma espécie de salário mínimo, bem mínimo mesmo, o qual podem pleitear os que não têm mais direito ao salário desemprego) ou, como sabem muito bem os brasileiros, virar mágico e sair fazendo truques para sobreviver.
Esta França que estamos apresentando, a França não gosta nem um pouco de mostrar ao exterior. Independente disso, ela existe e a situação de Roubaix não é nenhum fenômeno isolado: atualmente, no país dos Direitos Humanos, existem centenas de milhares de pessoas vivendo em condições indignas. Porém, nas manchetes dos jornais, anuncia-se por todo lado que as enormes empresas nacionais nunca tiveram tanto lucro. Quem será que “eurolucra” com essa desinformação?
Uma das características mais trágicas e marcantes destas situações é o silêncio que as cerca, encobrindo-as. Os desempregados, na França, devido a um poderoso condicionamento cultural, se calam, oprimidos pela vergonha e pela culpa. Freqüentemente, mergulham numa depressão profunda, que acaba por se tornar crônica, afinal, lá não tem carnaval onde eles possam sambar as mágoas.
Os desempregados franceses, vítimas de uma depressão silenciosa, como que se apagam, tornando-se transparentes, pois o país não quer que eles sejam vistos, ouvidos. O escritor Ricardo Montserrat compara esta opressão ocasionada pelo neoliberalismo (guardando as proporções devidas) à ditadura que ele conheceu quando vivia no Chile e participava da resistência cultural ao regime de Pinochet. Em ambos os casos, trata-se de reduzir ao silêncio os que são submetidos a uma ordem injusta.
Através da oficina de literatura com os trabalhadores desempregados, Ricardo buscou, sobretudo, quebrar esse silêncio, permitindo que esses esmagados pelo sistema retomassem a palavra. Mas ele ousou ir mais longe. Ousou, com estes homens e mulheres, escrever um verdadeiro livro para que esta fala se espalhasse, para que muitas outras pessoas pudessem se reconhecer nela, para que, desfeito o nó na garganta, a fala dessas pessoas se revestisse de força, expressando uma denúncia.
O livro acabou sendo publicado sob a forma de um romance, através da prestigiada coleção Série Noire, da Gallimard, sob o título “Ne crie pas” - “Não grite". Embora seja uma narrativa fragmentada, devido ao singular processo de elaboração, impressiona por sua intensidade e cumpre seu propósito de dar voz ao grito daqueles que, em qualquer país onde estejam, sobrevivem à margem do sistema que não privilegia como fundamental o desenvolvimento humano.


Sandra R. S. Baldessin


*Imagem: captada no sítio do Grupo Trastorns d'Ansietat.



4 comentários:

. . . disse...

Acho que a literatura e a arte em geral s�o as maiores vozes, onde podemos externar tudo aquilo que sentimos. Existia um morador de rua, aqui no centro de S�o Paulo que escrevia milhares e milhares de palavras de protesto, debaixo do Minhoc�o, utilizando peda�os de giz e restos de carv�o. Acho que a iniciativa � louv�vel a partir do momento em que o pr�prio ser descubra o seu direito de indignar-se.
Bjs

Sandra Baldessin disse...

� isso a�, F�bio, o mundo est� cheio de vozes, mas, sem d�vida a voz da linguagem art�stica ressoa acima do ru�do de fundo.
Seus textos tamb�m s�o muito bons e as receitinhas de coquet�is...hum, de dar �gua na boca.
beso.

Vania Beatriz disse...

muito interessante!
E a gente pensa que na Fran�a n�o existe esse tipo de problema...

Sandra Baldessin disse...

� isso mesmo, a m�dia francesa raramente deixa transparecer para o exterior esse tipo de coisa.