sexta-feira, 8 de julho de 2005

O último voo do flamingo

Rating:★★★★★
Category:Books
Genre: Literature & Fiction
Author:Mia Couto
Mia e eu: encontros no texto

Surpreendo-me completamente apaixonada por Mia Couto. Mais que isso: estou apaixonadamente surpresa com as janelas que sua prosa poética abre para o leitor. Não me lembro exatamente quem disse que todo grande escritor funda novamente a linguagem, mas, quem o disse falava desse escritor moçambicano. Mia, que se chama Antonio, mas, por se entender gato, na infância, acabou por incorporar o apelido.
Mia Couto é biólogo e professor; já foi militante político, porém, hoje, só luta com palavras, e que palavras! Sua escrita volátil revela uma verdadeira reverência para com a linguagem, um respeito ímpar pelos dialetos e pela comunicação inventada por suas personagens.
O primeiro contato com sua obra foi através de “A varanda do Frangipani” (1999), texto delicioso, uma escrita plena de voz, de intensa oralidade, que, sem a pretensão de fazê-lo, resgata poeticamente as tradições orais africanas. Desse livro, carrego comigo a forte impressão dessas palavras: “Hoje eu sei: África rouba-nos o ser. E nos vaza de maneira inversa: enchendo-nos de alma.”
Depois de “A varanda do Frangipani”, li “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra” (2003) – e conheci Juca Sabão, personagem inesquecível que me sussurrou, nas horas silenciosas de leitura, verdades profundas, perfeitamente inseridas no contexto de uma história fantástica. Pela boca de Juca, ouvi que “Encheram a terra de fronteiras., carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações – a dos vivos e a dos mortos.”
Finalmente, cheguei ao que considero o mais expressivo de seus livros: “O último voo* do flamingo”. Nesse texto, mais do que nunca Mia Couto explora a linguagem até as últimas conseqüências. Em alguns momentos, lembrou-me Guimarães Rosa, por exemplo, com a criação do verbo sozinhar-se; e a poesia, ah, a poesia permeando a prosa, fluida e sensitiva: “Em fins de tarde, os flamingos cruzavam o céu. Minha mãe ficava calada, contemplando o vôo.(...) Tudo, nesse momento, era sagrado.(...) Para ela, os flamingos, eram eles que empurravam o sol para que o dia chegasse ao outro lado do mundo.”
“O último vôo...” respira memória e imaginação, mescladas numa linguagem alquímica. É como se o escritor estivesse revisitando lugares seus conhecidos, levando as personagens a percorrerem caminhos dantes trilhados por ele mesmo, a beberem nas fontes da sua própria experiência. E ao leitor só resta o pasmo: que mundos, que homens, não se constroem com palavras!
Mia criou um texto transbordante de corpo, clivado de memórias e através do qual o leitor mesmo se reinventa. Talvez, essa fascinação de que estou vítima por obra de “O último vôo...” se relacione com o fato de que o sentido do tempo tem uma importância fundamental no texto, o Tempo surge quase como uma personagem que domina a cena, enquanto também possui os corpos das outras personagens, e, claro, o nosso: “O corpo é feito de tempo. Acabado o tempo que nos é devido, termina também o corpo.”
Que haja tempo para se ler Mia.

Sandra B.

*voo está grafado sem acento, no original.

4 comentários:

Eliana Mora disse...

achaste uma pérola - Mia é o encantador de cabeças, almas, com a arma que citas: a palavra.
Bom, ótimo gosto - vais arrumar tempo...

besos
El

Sandra Baldessin disse...

com certeza, El.
besitos

XXXX YYYY disse...

Ainda não tive um contato direto com seus livros. Assisti ao documentário 'Língua', do qual ele faz parte. Suas intervenções foram algumas das mais interessantes do filme. Saí encantada com ele, apenas por vê-lo ali. Ele já está na lista que não pára de crescer e com a qual eu já parei de me angustiar. Um por um, eu chego nele.

Ah, com sua comparação com Guimarães Rosa, me lembrei de que a palavra mais linda da língua portuguesa não existe nos dicionários. 'Solistência'. Só existe no Rosa, mas quem é que vai negar seu sentido real?

Sandra Baldessin disse...

nem me diga, Luciene... muitíssimo bem lembrado, o Rosa.
obrigada pela visita e seu comentário.