sábado, 23 de julho de 2005

Boneca torta*


Aplausos. A intensidade deles a inebria, sempre. Não é nada parecido com o que sente quando está a sós com ele, claro, mas, também fazem com que o coração dispare. A sensação mais parecida com aquela que a domina quando está com ele, trancada, ela experimenta ao ouvir suas próprias gravações. Nesses momentos, ela esquece o cansaço extremo e a debilidade que a tem perseguido nos últimos meses.


Imaginando-se montada num ginete negro, Jackie recomeça a cavalgada, prendendo o violoncelo entre as pernas. Sua música, sem rédeas, galopa desenfreada arrastando-a e ao público para uma espécie de éden. Eles a desejam, ela sente a onda poderosa que emana deles, o cheiro dos corpos que os preciosos perfumes não conseguem diluir. A boca entreaberta e a respiração ofegante, ela os possui.


Agora que os últimos acordes da sonata em lá maior de Beethoven a dominam, ela reparte, ironicamente compadecida, o seu gozo com eles: eles também chegarão ao clímax, mas, nem de longe conhecerão o que ela conhece. É justo. A recompensa possível para a relação escravizante entre ela e o instrumento do seu prazer.


Não sabe, Jacqueline não sabe que está morrendo e, pior, antes da morte o amante a abandonará, mudo de saudade das suas mãos apaixonadas, do seu toque instintivo, da volúpia da sua alma que apenas ele pode apaziguar.


 


Sandra B.


 


*Esse texto é uma divagação ficcional sobre a maravilhosa celista Jacqueline Dupré. Escrevi após assistir o dvd "Les Introuvables". Jacqueline nasceu em Londres, em 1945; toda sua vida foi marcada pela música e por relações familiares torturantes. Musicista excepcional, a crítica costumava dizer que ela não se apresentava como solista de orquestra alguma, mas a orquestra é que estava ali para acompanhá-la. Aos 23 anos, no auge da sua carreira, Jacqueline foi acometida de esclerose múltipla, doença auto-imune que aliena e destroi o corpo, além de impor dores cuja intensidade pode ser agônica. Jacqueline entrou em coma em outubro de 1987, ao som de sua própria gravação do Concerto para violoncelo de Schumann. Morreu aos 42 anos, transformada numa boneca torta, repetindo à exaustão: " A única coisa que sei fazer é tocar esse maldito instrumento".

10 comentários:

XXXX YYYY disse...

Nossa, Sandra! Ela morreu tão nova..

XXXX YYYY disse...

Que texto maravilhoso. Vindo de você, teria que ser assim.

Valerio Pregnolato disse...

Assim que der vou atras do DVD "Les Introuvables". Valeu pela dica, e pele seu belo texto. kisses, Valerio Pregnolato.

Jose Liborio disse...

Vidas intensas me interessam muito e também pela coragem que as pessoas que as vivem tem. Procurarei esse DVD mas já devo dizer que seu texto me arrepiou, me dá aquele velho nó na garganta e , inclusive, pensar que essas pessoas, por mais sofridas que tenham sido suas vidas, são intensas demais para serem ignoradas, ao contrário de vidas que duram décadas e não dizem nada a ninguém... Beijos amiga!

Eliana Mora disse...

um presente de fato; pena o destino da artista - mas a lembrança do belo - é sem data.
beijo
El

Sandra Baldessin disse...

sim, na concepção que temos da morte pode-se dizer que ela morreu muito nova, mas, sob o ponto de vista da arte está intensamente viva.
è preciso observar, também, que entre os 23 e os 42 anos ela sobreviveu em circunstâncias extremas.
obrigada pela visita, Vana.
besito

Sandra Baldessin disse...

obrigada, Joze. Eu diria que, nesse caso ,a inspiração externa(música) teve um papel importante.
beso

Sandra Baldessin disse...

obrigada pela visita, Valério. Eu tb não tenho o dvd, ele me foi emprestado, meu amigo comprou em Buenos Aires; andei fazendo uma pesquisa na net e não encontrei nada, no Brasil. Mas, pode ter certeza que é maravilhoso.

Sandra Baldessin disse...

é, eu tb me interesso por essas pessoas, principalmente as mulheres: Jacqueline, Frida, Virgínia Wolff, Florbela Espanca, mulheres que se manifestaram em corpo e obra e tiveram vidas breves e intensas. Estou escrevendo sobre isso...
besitos, querido

Sandra Baldessin disse...

com certeza, El, Jacqueline vive através de sua música.