domingo, 30 de janeiro de 2005

pela fresta do olhar


Eu vi quando ele acariciou a própria garganta com a lâmina, vi os olhos dele e, digam o que disserem depois, eram olhos tranqüilos, daquela espécie de tranqüilidade que os homens demonstram quando pensam que decidiram alguma coisa, quando se entendem no controle, os tolos. Riscou de leve o pescoço e imediatamente se formou uma bela gargantilha vermelha. Examinou-a na frente do espelho e, por descuido, encontrou o próprio olhar refletido. Vi os rubis se desprendendo do pescoço, gotejando, brilhantes, contra o fundo branco da pia. Ele ali, perdido na própria mirada. A cantiga, acho que o esperava oculta no olhar, começou a escorrer da sua garganta: “Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes, para o meu, para o meu amor passar...” A sua voz não me impediu de ouvir os passos na escada. Ah, ele também escutou o toc-toc dos saltos na madeira. O som da chegada daquela que caminha sobre as pedrinhas de brilhantes. Certo, foi o som que o fez lembrar que já estava morto mesmo. O cinzel de lapidar rubis descobriu o segredo da sua carne e a melodia não estava lá, apenas o seu aroma, denso, quente. Da cor do grito dela, da dona do toc-toc. Ela me olhou como quem pede explicação, os rubis se dissolvendo sob seus pés. Não lhe direi nada. Os gatos também não têm todas as respostas.

Sandra R. S. Baldessin


imagem: Rubis Stern. disponível em: www.asoka.de/BabbaGold/

4 comentários:

XXXX YYYY disse...

Sandra, parabéns pelo belo texto.
Obrigada por disponibilizá-lo.
bjs.

Sandra Baldessin disse...

obrigada Nyx. fui ao seu sítio e fiquei encantada.

Tom Boechat disse...

o que dizer?
felino.

Sandra Baldessin disse...

se está felino, consegui transmitir minha idéia.
beso, Tom.