terça-feira, 7 de dezembro de 2004

Aprendiz de Alice


Foi caminhando em direção à música. Não... não fora a música que primeiro o atraíra e sim o perfume. Os aromas de flores e ervas mesclados. Ladeou o canteiro de cravíneas, aproximando-se cada vez mais da casa de onde fluíam sons de risadas e conversas. Aquelas vozes! Há quanto tempo não as ouvia.
Sabia que ao atravessar a soleira da porta Alice viria ao seu encontro. Primeiro,chegaria o seu sorriso, a boca de tangerina, que ele se apressaria em devorar. Imediatamente ela colocaria em suas mãos alguma bebida gelada, os olhos pregados nos dele, tanto que ele experimentaria uma vertigem verde, como se matas e horizontes o penetrassem pela fenda do olhar.
O salão iluminado, o assoalho de tábuas compridas e brilhantes, enceradas até à exaustão, os vasos de cristal. Que cenário seria este?
Não se deteve na pergunta pois Alice já o chamava para dançar; um bolero... Por qual fresta do passado escapara aquela canção? Segurando as mãos dela viu de relance o anel de noivado, a esmeralda solitária que lhe oferecera há tantos anos atrás. Impossível!
O calor do corpo de Alice interrompeu suas reflexões. Meu Deus! Com que paixão ele a amava. A condição de noivos permitia que ele a abraçasse mais ousadamente, o seu próprio corpo submetido à tensão de um desejo quase insuportável. E Alice, plena da música, o rosto colado ao seu. Inquieta!
Ele observava, perplexo, o desfile dos rostos familiares das pessoas com as quais convivera por tantos anos: Tia Inácia, a solteirona que nunca abrira mão dos vestidos enfeitados e juvenis; Aluísio, com seus pulmões fracos, jamais tirava o casaco; os gêmeos, seus irmãos mais velhos; repentinamente, avistou-a sentada na poltrona, o eterno xale cobrindo as pernas, o olhar incisivo, fixo nele. A bisavó de Alice, D. Conceição. Comia canapés, mastigando-os devagarinho, como fazem os velhos.
“Não se case com ela. Alice possui o sangue rascante como vinho...o peito inquieto; ela ainda não sabe disso, apenas pressente sua própria fúria.”
Conselhos vãos. Quantos anos depois lembrara-se deles? Sem arrependimento.
Fora maravilhoso perder as esperanças ao lado dela. Fiel ao seus próprios anseios, ela o assustou desde a noite de núpcias quando, ao invés de dar, tomou.
A natureza, sábia, negou-lhe os filhos que ele tanto desejava, mais como uma forma de torná-la mais sua. Sua? Os cristais tilintando, a esmeralda brilhando no dedo delicado.
Demorou a entender que havia mais Alices do que as que poderia compreender, mas amou-as, todas elas, com uma ternura plena de renúncia. Dormia com uma, acordava com outra. Dormindo, ainda não era dele, embora o corpo abandonado ficasse à sua mercê por algumas horas. Ele mesmo não adormecia sem prendê-la (o seu corpo inanimado), agarrando-a pela cintura sempre esguia.
A primeira vez que ela cortou os cabelos bem curtos acreditou que finalmente partiria. Temeu, sabendo que a presença de tal ausência o sufocaria, implorou que ficasse, não precisava explicar mais nada, nunca mais ele faria perguntas, que mentisse, que fosse infiel, mas pelo amor de Deus, não levasse a boca de tangerina, o jeito de virar o pescoço, a risada de menina, não levasse para longe dele a vertigem verde do seu olhar. Ela apenas sorriu, abrindo braços e pernas para agasalhá-lo e acabar com seus medos. Conselhos vãos.
A música e o perfume. As vozes rompendo as barreiras do dia de ontem. Longos os anos das Alices, umas sucedendo-se às outras, procissão interminável. Amou nela todas as mulheres que poderiam tê-lo feito feliz, mas não com o tipo de felicidade desesperada que ela lhe ofereceu.
O aroma das flores mesclado com ervas. A esmeralda, brilhando ainda, nos dedos que se fizeram frágeis e trêmulos; nunca estranhou os cabelos brancos dela, a teia de rugas finas que se formou em torno dos olhos verdes, era mais uma Alice para adorar. Agora sabia, com certeza, que não lhe seria dado compreendê-la.
Morta, desejou-a com uma saudade infinita. Levou consigo a esmeralda para o aconchego da terra. Que cenário seria este?

Sandra R. S. Baldessin


* Esse conto foi um dos vencedores do Mapa Cultural Paulista - Categoria Literatura/Contos, 2002. Consta de uma antologia publicada pela Editora Universitária de Lisboa.
* imagem: obra do artista mexicano Ariel Pañeda Macías; disponível em www.urocirugia.com/cultura.htm

2 comentários:

XXXX YYYY disse...

Muito bom conto, Sandra. Felizmente nos encontramos também aqui no Multiply, site que nos permite um maior intercâmbio e sem as limitações técnicas do Orkut.

Beijos.

Sandra Baldessin disse...

gracías, querido.