quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Adélia*


 


            Nascera para deixar os homens esperando. O pai, seu primeiro e mais fiel adorador, contara-lhe segredos admiráveis sobre eles. Sacrificara, impiedoso, a sua própria imagem de macho arrogante para que ela pudesse ver - o homem - despojado do feitiço da virilidade.


            Ela não tinha memória do dia em que percebera que ele estava empenhado em reconstruir-se nela. A mãe, praticante de uma submissão irônica, assistira, mais curiosa que preocupada, o aprendizado da pequena Adélia.


            Na verdade, apenas quando a menina já contava catorze anos, a mulher, que passara a vida bebendo amargura, pressentiu, de forma agoniada, o destino que o pai pretendia lhe dar. Foi, entretanto, privada de assistir o desfecho das coisas. Morreu. Câncer de estômago.


            Ele vivia com a boca seca. Quem deseja sabe. Planejara permanecer casado somente por dois ou três anos, no máximo. As mulheres nunca o atraíram e a convivência com elas parecia-lhe sufocante. Contudo, Adélia (colocara na filha o nome de sua avó, não que a amasse, apenas para seguir a tradição) não lhe permitiu tal opção.


            Ele a amou. Compreendia que se amava nela, mistérios da incorporação. Sabia, também, que caso se separasse da esposa, Adélia estaria perdida para ele. Decidira ficar e tecer as tramas da vida da filha.


            A esposa não se importara; a menina pertencia, sobretudo, a um nome. Tinha a vida penhorada. Ele não precisou disputar Adélia com ninguém. Eram apenas os dois. Cúmplices.


            Cúmplices, sim, pois não lhe mostrara ele, aquela fotografia? Oh! Sim! Ela era um bebê. Ele montara cuidadosamente a câmera sobre o tripé, depois de ter depilado o tórax. Lambuzara os mamilos com mel e aproximara a menina para que ela os sugasse. Repetira muitas vezes o ritual. A mãe se recusara a amamentá-la: coisa animalesca, dizia.           


Ao mostrar-lhe a foto, ela chorara. Devia ter uns dez anos. Ele também chorou, tomado de um sentimento de devoção. No dia seguinte ela menstruara. Ele mandou que ela lesse os livros de Jean Genet; ela leu o que havia para ser lido. Ah! Os segredos que compartilhavam...


            Não temeu, nem mesmo quando viu a fêmea desabrochando feito flor daquela carne tão branca. Adélia crescera noturnamente. Ele presenteou-a com um objeto inesperado: que nenhum homem a surpreendesse virgem!


            Ela adorava o poder. O poder de ser Adélia. Afiava os olhos nas faces dos homens que viviam cercando-a. Sabia que eles queriam muito mais do que ela poderia dar. Todo o seu ser estava comprometido com o homem com o qual celebrara ritos secretos de comunhão. Ritos doces como o mel.


            Nunca. Nunca em toda sua vida desejara uma mulher. Mas, aquela, não era uma mulher. Era, talvez, uma obra de arte. De sua autoria. Ela praticava, contra ele, as lições que ele passara a vida ensinando-a.


            Desejar doía. Com a carne dilacerada pela angústia da posse adiada, ele esperava, sempre. Não fora ele que a ensinara a tardar?  Vez por outra ela atraía homens para a sua cama. Cúmplices.


            Fora numa dessas noites que ele atinara com sua própria verdade. Adélia não era dele: era ele. Desta vez, presenteou-a com um terno, um belíssimo costume, feito sob medida, incluindo um chapéu.   


 


Sandra B.


 


* Adélia. Coletânea "Capitus?"


Imagem: Bartira, de  Miguel Ángel Perez.

6 comentários:

Eliana Mora disse...

extremamente bem urdido - para o efeito do final!
Maravilha, San!
besos

Nelson :-P disse...

Acho q desejar sempre dói, não é?!

Sandra Baldessin disse...

querida amiga, vc sabe que sua opinião é importante para mim.
Obrigada.
besito

Sandra Baldessin disse...

sempre. talvez, porque sempre desejamos a coisa que não está lá, mas apenas em nossa imaginação. Mas, pode ser que haja dor maior: a do desejo satisfeito...

Gilberto Uryn disse...

O desejo satisfeito encerra um ciclo, deixa um vazio no depois, página em branco, missão cumprida. Recomeçar dói, mas tentar fazer do recomeço uma mera continuação transvestida, é genial.

Adorei, de verdade.

Beijos

Sandra Baldessin disse...

obrigada, Gilberto.
besito