domingo, 6 de março de 2005

A erótica textual


É preciso apropriar-se do texto, ludibriar o autor que tenta nos conduzir pelo seu caminho, e, com esse ato, libertar o texto da origem autoral. É preciso desnudar o texto e estar nu diante dele. Iluminá-lo com nosso olhar e deixar-nos penetrar pela luz que lhe emprestamos. É preciso violar o texto, deformá-lo, na agonia de ressignificá-lo. O contrário disso é o tédio: a destruição do desejo de leitura.
O texto anseia pelo toque do leitor ousado, o único que pode legitimá-lo, autorizar a sua existência. Eu-leitor assedio o texto com a única finalidade de me deixar seduzir por ele no jogo lúdico das entrelinhas, do vir-a-dizer. É preciso emprestar o próprio corpo ao texto, o verbo se fazendo carne – a minha, ad infinitum.
Como disse Marguerite Duras pela boca de um de seus mais instigantes personagens: “Assim, compreendera que a leitura era uma espécie de contínuo desenrolar, dentro de seu próprio corpo, de uma história inventada por ele.”
Há coisas que só a leitura literária nos dá; quem não se entrega a esse prazer, sequer entende que precisa daquilo que não sabe que existe.

Metáfora*

Quando me abordas
disfarçada de gramática,
és toda virgem:
substantivo, verbo ou pronome,
és pura ortografia
sem malícia.
Abraço-te
e sob o fogo
da paixão superlativa
dessas mãos,
ficas desnuda -
já não tens
conceituação.
És Palavra, simplesmente,
adorada cortesã
de todos os poetas.

Sandra R. S. Baldessin


*do livro À Flor do Verso, 2001.
imagem: fotografia dos livros que estou lendo e relendo.



24 comentários:

XXXX YYYY disse...

Nossa... LINDA!!!!

Nos dá ainda mais estímulo para escrever e ler coisas bonitas como esta.

Beijos!!!
;o*

Sandra Baldessin disse...

obrigada, querido Pedro.

Sandra Baldessin disse...

gracías, Yeso.
besito

Sergio Mattos disse...

Gostei desta ótica de assediar. Também acredito que a comunicação só se processa quando existe interatividade. No caso de um poema, nos entre-versos, o leitor deve recria-lo com suas proprias vivências.
Um abraço
sergio mattos

Eliana Mora disse...

[...]O texto anseia pelo toque do leitor ousado, o único que pode legitimá-lo, autorizar a sua existência. Eu-leitor assedio o texto com a única finalidade de me deixar seduzir por ele no jogo lúdico das entrelinhas, do vir-a-dizer. É preciso emprestar o próprio corpo ao texto, o verbo se fazendo carne – a minha, ad infinitum. [...]

Uma interpretação muito bem escrita, uma correlação leitura-sentidos em forma extrema de união, entrega.
Muito bom, San

Besos
El

chelsea hotel disse...

«Há coisas que só a leitura literária nos dá; quem não se entrega a esse prazer, sequer entende que precisa daquilo que não sabe que existe.»

Isso é perfeito. Bela reflexão, Sandra. E o excerto que destaquei - por calar fundo em mim e nas minhas inquietações.Quer vir a Portugal gritar comigo à porta do Ministério da Educação, que parece achar que a Literatura é algo acessório, dispensável? Demasiado subversivo, talvez? Tenho a minha teoria - da conspiração - sobre o assunto.

Gostei de vir à sua casa :)
beijo

. . . disse...

Cada vez que apareço por aqui, me surpreendo com a força dos teus textos e das tuas palavras...

Como um humilde poeta concordo em gênero, número e grau com tudo o que está escrito...

Beijos no teu coração, San

XXXX YYYY disse...

Essa minha amiga é fera mesmo.
Desnudar, violar, invadir seu texto é sempre um imenso prazer.

Sandra Baldessin disse...

com certeza, Sérgio; interatividade é fundamental; eu gosto dessa expressão: assediar. é exatamente como me sinto em relação aos textos que me cativam, eu quero ir fundo, ir além e, se possível, torná-lo mais significativo através do compartilhar. Se você morasse aqui pertinho eu o convidaria para o "observatório de textos." Enfim, pelo menos temos a net.
besito

Sandra Baldessin disse...

gracías, minha delicada amiga. você tem olhos de ver.

Sandra Baldessin disse...

obrigada, Chelsea, a sua luta é bem parecida com a minha, quanto à presença fundamental da Literatura na Educação. Eu vou pra Portugal ajudá-la a gritar e depois voltamos juntas para gritar no Brasil também.
obrigada pela visita.

Sandra Baldessin disse...

ah, mon ami, eu estava com saudade de ver o seu "retratinho" aqui na minha casa... volte sempre. obrigada pelo carinho.

Sandra Baldessin disse...

pois então, meu caro Joze, fique à vontade para praticar todos esses verbos... obrigada pelo apreço.
beso

Alan Maciel da Silva disse...

clap clap clap! tenho apenas onomatopéias para ti!

Jose Liborio disse...

É... e tem gente que não entende porque passamos algumas horas de nosso dia vasculhando as páginas, reconstruindo/construindo/desconstruindo dramas e personagens, nos apropriando, "digerindo" e muitas vezes "excretando" tanta coisa nos textos...
Parabéns Sandra, você "pegou na veia" como se diz no jargão futebolístico e marcou um "golaço" que explica 100% do hábito sagrado da leitura.
Um grande beijo!!!

Herbert Farias disse...

Palavra tem que ser assediada mesmo, desrespeitada, torcida, empurrada em direçao à mesa do leitor que lhe esprema seu gozo mais intenso. Sem amarras morfológicas, sem traumas sintáticos, sem pudores semânticos. Como diz Luis Fernando Verissimo, "a gramática tem que apanhar todos os dias para saber quem manda".

Ricardo de Almeida Rocha disse...

De resto, é assim com toda arte, mas, sim, muito especialmente nesse caso.

bj

Sandra Baldessin disse...

obrigada pela visita ao meu sítio e pelos comentários; não respondi antes pois estava viajando.
Um abraço.

Sandra Baldessin disse...

obrigada Alan, pela visita e pelas onomatopéias...
besito

Sandra Baldessin disse...

Obrigada, Jose. Gostei de sua visita e que tenha postado um comentário, o feedback é fundamental.
besito

Sandra Baldessin disse...

concordo inteiramente com Veríssimo, nesse caso, mais veríssimo do que nunca...
besito e obrigada pela visita.

Sandra Baldessin disse...

obrigada Ricardo; é isso mesmo, a arte exige o mergulho, a falta de ar...
besito

Felipe Coelho disse...

Lindo!!! A gramática tem a seriedade de um código de leis... já as palavras permitem tudo.
Beijos e saudades também!

Sandra Baldessin disse...

obrigada pela visita e pelo carinho.