domingo, 30 de dezembro de 2007

O imutável e o inacessível

As duas assombrosas palavras que aparecem juntas no título desse artigo podem dar a impressão de que vou meter a minha colher de noviça na compota dos iniciados. A coisa toda é muito mais prosaica; trata-se, apenas, do efeito colateral de olhar-se ao espelho para modelar as sobrancelhas.

Pode acontecer de, repentinamente, nos determos para uma mirada mais atenta nos próprios olhos. Ato perigoso, principalmente nessa fase de transição entre um ano que se despede e outro que se aproxima.

Nos olhos que miravam os meus, descobri sem surpresa, presentificavam-se todas as minhas versões: a menina, a jovem, a mulher. E, espreitando, nas sombras, as imagens que ainda terei. Na linha contínua do tempo, passado, presente e futuro enlaçados numa dança ininterrupta refletida no brilho do olhar.

Foi nesse momento que elas surgiram: as palavras imutável e inacessível. A velha e boa rotina de olhar-se ao espelho para tirar as sobrancelhas, se for dezembro e véspera do Ano-novo, pode nos transformar em filósofos de meia-tigela.

Enquanto observava a menina que fui, atinei que o passado pertence ao reino do imutável. Ao domínio das coisas que, para o bem e para o mal, permanecerão cristalizadas no tempo. Grande sabedoria a dos antigos: o passado é da ordem do leite derramado, sobre o qual não adianta chorar, nem pra lamentar o que era doce e se acabou, tampouco para trazer ao paladar o ressaibo de amarguras não metabolizadas.

Já o futuro, imagens que ainda não se delineiam no espelho, pertence ao reino do inacessível. O futuro é da ordem da incerteza, da beleza ou da dor que se revelarão somente quando o amanhã desembrulhar-se hoje.

Assim, somos o que somos nesse intervalo concreto entre o passado e o futuro, ao qual damos o nome de agora. O resto é o mistério que nos atrai e seduz, feito o passarinho enfeitiçado pela cobra. E, tenho certeza, a vida perderia muito do seu encanto se desvendássemos a receita do tal feitiço.

Já disse o poeta, na canção: são muitos os perigos dessa vida. Os piores, dentre eles, é não desvincular-se do imutável e viver angustiado pelo inacessível.

2008 se avizinha, trazendo em sua esteira o agora, o presente: único canteiro de obras possível para nos construirmos seres mais humanos. Mais uma oportunidade concreta para aprendermos a estar no mundo, de forma criativa, com todos os outros seres.

Que 2008 nos atraia e seduza, com todos os seus perigos e suas promessas. São os votos dessa filósofa de meia-tigela, mas que, pelo menos, sabe modelar as sobrancelhas.

 

Sandra B.

8 comentários:

Despudorada Alma Malmal disse...

Assim, somos o que somos nesse intervalo concreto entre o passado e o futuro, ao qual damos o nome de agora. O resto é o mistério que nos atrai e seduz, feito o passarinho enfeitiçado pela cobra. E, tenho certeza, a vida perderia muito do seu encanto se desvendássemos a receita do tal feitiço.

e eu gosto....

bom Ano pra vcs ai. Conquistas, Amores, Alegrias...

bijão

AluiZio Derizans disse...

...e um Feliz 2008, prá você também!

Sandra Baldessin disse...

Agradeço, Malmal e Derizans, a leitura e o carinho. Bom ano-novo para vocês.
Besitos afetuosos.

amélia pais disse...

Já o disse noutro lugar - gostei muito deste sei texto, Sandra!Feliz ano novo!

amélia pais disse...

Mas por falar do tempo, não resisto a transvrever um dos muitos mais belos poemas de Fernando Pessoa:
Pobre velha música! (s. d.)

Pobre velha música!
Não sei porque agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.

Poesias. Fernando Pessoa.
1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924.

sandra vacchi disse...

Sandra bom prencipio de ano novo! Tudo de bom!
Grande beijo!

Sandra Baldessin disse...

Obrigada, Amélia. Eu amo esse poema do FP.
besitos

Sandra Baldessin disse...

Oi sandra, para você também, amiga, tudo de bom!
(Pensei que vc estivesse viajando, pois não recebi mais emails; quando vc viaja?)
besitos