domingo, 26 de março de 2006

Anjinho de mamãe*


Caminha apressado, esbarrando mesmo nas pessoas com as quais cruza. A mão esquerda, guiada por um comando superior, risca as fachadas das casas, das lojas.  Isso é real, isso é real, isso é real. O suor escorrendo dos cabelos para o rosto, molhando o pescoço, as costas. Sente as virilhas úmidas. O suor, sim, o suor é uma prova incontestável de que ele também é real.  Real enquanto matéria viva, apodrecendo sob o sol de janeiro.


Não consegue evitar, mete o nariz nas axilas. O cheiro azedo da decomposição que um dia será plena. Sente-se nauseado de tão feliz. Se está fedendo é porque existe. Basta-lhe essa compreensão.  Assalta-o o desejo de se apalpar; vem tão intenso que é impossível resistir. Toca os próprios braços, o peito, os testículos, freneticamente.  De fato, existo. E se existo, esta rua  pela qual caminho também é real,  e aquela árvore...


            Dá uma pequena corrida até o final da calçada e abraça-se à arvore, um flamboyant.  Inspira profundamente, esfregando o nariz, o rosto, no tronco. Vontade de rir e chorar enquanto gira ao redor do tronco. A canção, lembra-se daquela canção? Cantava-se  de mãos dadas ao redor de uma árvore, num lugar tão distante chamado infância.


            Por que partira de si-mesmo-menino, deixando o aconchego de um mundo que cabia no abraço da mamãe? É verdade que recusara-se até o limite das possibilidades! Mas, os braços, as pernas, desandaram  a crescer; pêlos escuros, intrusos, nasceram em seu peito, no rosto, em seu sexo, e não adiantava mais a mãe chamá-lo “meu bebê”. 


O anjinho de mamãe não se via mais no espelho. Já não era real. Quem seria, meu deus, aquele homem de olhos negros que o fitava tão surpreso? E o medo, sim, o pavor de que a mãe descobrisse que ele não estava mais ali? É verdade que ela parecia não perceber.


E não fora sempre assim? Lembrava-se de chegar em casa chorando, porque a professora insistia em dizer-lhe: você já está um homenzinho.  Mentira que a mãe negava entre beijos: meu bebê, o anjinho da mamãe não vai crescer, venha no colinho da mamãe, venha. “Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta...”


Um guarda municipal o aborda. Que diabos está fazendo girando feito um doido em volta dessa árvore?  Vamos, vamos, que maluquice é essa? Esta é uma cidade tranqüila, não gostamos de nenhum tipo de malucos. Vai ver... está drogado, é isso? Mas, era só o que faltava! Aqui não toleramos essas coisas, não! Apontava o dedo para o seu rosto enquanto falava e suas bochechas gordas tremiam. A voz saía estrangulada de uma boca sustentada por três queixos.


Seria real esse homem gorduroso metido numa farda azul escura? Estende a mão para tocá-lo, certificar-se de sua existência. O guarda agarra o seu braço estendido e começa a torcer. A dor é intensa. Se está doendo, então é real. Graças a Deus! Sorri, um sorriso que é uma careta de dor e de alívio e que o seu agressor interpreta como escárnio.


Seu filho da puta! Esta é uma cidade de gente normal; gente normal, entendeu? Olha ao redor, furtivamente, antes de desferir um murro nos rins do rapaz e, em seguida, outro que o atinge no nariz.  Sangue, isso é sangue... Estou sangrando porque existo. Uma onda de insuportável felicidade domina o seu coração; felicidade que se extravasa através de um fluxo incontrolável de  gargalhadas guturais.


Seu corpo está possuído de tremenda energia, a energia de saber-se real. Tenta abraçar o guarda, envolver aquela montanha de carne que tão generosamente demonstrou o quanto ele existe. Existe, na verdade, a ponto de sangrar!  Quantas vezes, trancado no banheiro, ele próprio se infringira um corte com a lâmina de barbear, desesperado, precisando do testemunho da dor e do sangue para sentir-se parte da realidade.


Oh! Como ele ama aquele ser humano uniformizado, fedendo à cachaça e torresmo!  Pensa que deveria dizer algo ao guarda, mas as palavras sempre lhe pareceram insuficientes para expressar seus sentimentos.  Fica apenas olhando-o com devotada atenção.  Sim, ele sabe reconhecer a fúria quando a encontra. Quase sempre se revela no ferro do olhar, nas mãos que se contorcem... Porém, a boca, claro, a boca é a testemunha mais fiel da ira:  antropofágica, salivante. 


Aproveitando-se do lusco-fusco, aquela hora estranha na qual as pessoas parecem desaparecer na névoa de si mesmas, o guarda arrasta sua presa até o automóvel, estacionado próximo dali. O rapaz não resiste. Acomoda-se no banco para o qual foi empurrado como se tivesse recebido convite para um passeio.


Não resiste nem mesmo quando o legítimo representante dos homens normais arranca-o com violência do veículo, esmurrando-o apaixonadamente. Caído, seu corpo jovem é chutado, a botina pesada contra suas têmporas. “Sambalelê tá doente, tá com a cabeça quebrada, sambalelê precisava, é de umas boas palmadas...”    


A lua surge por detrás das nuvens no exato instante em que o guarda, abrindo o zíper das calças, revela a faca e o pênis, explodindo num orgasmo primitivo.


Lâmina e luar, mesclados, dão ao rapaz a ilusão perfeita dos olhos afetuosos de  mamãe. Adormece, a sua voz acalentando-o. “ Dorme neném, que a cuca vem pegar...”


 


Sandra B.


 


* este é o conto que concorreu ao Mapa Cultural Paulista, mas não foi classificado para a


premiação final.

15 comentários:

Jose Liborio disse...

Não ganhou o mapa mas é maravilhoso! Parabéns! Beijos, Sandra!

Sandra Baldessin disse...

obrigada, querido; como diz a canção: "O apreço não tem preço..."
beso

Eliana Mora disse...

gostei, também.; a descrição de 'lusco-fusco' é boa.
beijos, Sandra.

Sandra Baldessin disse...

oi EL, feliz com sua leitura. Obrigada.
besito

Gilberto Uryn disse...

Você já tinha mostrado, e eu adorei. Como vai você? Mó tempão!

Beijo

Despudorada Alma Malmal disse...

Pera lá, não ganhou em termos, foi selecionado pra final, então.além de que ele proporcionou o encontro com malmal, ganhou? eu ganhei,!!!

bijo

Nelson :-P disse...

Gostei muito!

Sandra Baldessin disse...

é verdade, Gil, eu estou numa roda viva...rsrs
besito, querido.

Sandra Baldessin disse...

é malmal, o encontro contigo foi o ponto alto do sábado, eu amei, de coração, e espero realmente encontrá-la muitas outras vezes. Quero que vc venha conhecer minha cidade.´
Agradeço sua amizade, seu carinho, que bom tê-la por perto...
beso, amiga.

Sandra Baldessin disse...

obrigada, Nel, principalmente pelo recadinho in off.
beso

Mascarenhas Castro disse...

Ganhamos nós, que o lemos

Sandra Baldessin disse...

obrigada pela leitura.
besito

XXXX YYYY disse...

Uma injustiça! Deveria ter sido classificado!

Lindo!

Beijos procê querida!
;o*

amélia pais disse...

Difícil saber se a eliminação foi adequada, não conhecendo os demais.Mas que o conto é excelente, isso é.E venceu, para mim.Beijo amigo

Sandra Baldessin disse...

Agradeço seu carinho e sua leitura, Amélia.