sábado, 18 de fevereiro de 2006

Excesso de realidade



A última coisa que poderíamos afirmar sobre os reality shows, do tipo BBB e outros que estão infestando a programação das redes de tevê mundiais, é que apresentam um excesso de realidade. Certo?


            Errado. Tomando como exemplo o BBB, embora saibamos que as ações e reações são muito bem articuladas para dar a impressão de espontaneidade, além da manipulação cada vez mais explícita da opinião pública, através da edição, sob um aspecto fundamental o BBB apresenta sim um excesso de realidade.


            Oculta sob a capa de diversão medíocre, o BBB valida os ideais perversos que norteiam a forma dominante de convivência nas sociedades contemporâneas: a competição. Já é questionável que a competitividade seja aclamada como a melhor qualidade que um ser humano possa ter. Sem maiores reflexões, muitos formadores de opinião, sem falar em pais e professores, estimulam o comportamento competitivo reafirmando a visão do mundo como um campo de batalhas onde sempre haverá vencedores e perdedores, sendo a medida do triunfo exatamente a mesma do BBB: o sucesso financeiro.


            No Big BrotherBrasil, para atingir a meta e ganhar um milhão de reais todas as estratégias (ou seria melhor dizer artimanhas?) são incentivadas e válidas. É preciso seduzir e conquistar supostos amigos que, ocasionalmente, serão descartados porque já não servirão ao interesse supremo. É preciso escolher os amigos certos, aqueles que têm popularidade, que podem contribuir para impulsionar a sua própria trajetória. O lema essencial se traduz por: não confie em ninguém. Parece familiar?


            Às vezes, me fica a impressão de que não sabemos o que estamos produzindo, como sociedade, quando louvamos e estimulamos estes comportamentos; quando não reprovamos explicitamente os atos de “passar a perna nos outros” ou “puxar o tapete” dos parceiros. E, depois, ficamos horrorizados com as reportagens de jornais e tevês que dão conta do número crescente de jovens ingressando na criminalidade ou na prostituição, como “método” alternativo para atingir o tal sucesso financeiro. Ah, mas esses são os “outros”, não tem nada a ver conosco, nós temos princípios!


            O imaginário coletivo está impregnado pela lógica do mercado: produzir, consumir, dominar. Este é o princípio gerador das mais destrutivas forças responsáveis pela devastação ecológica, pela violência, pela miséria. Forças que não sabemos como conter.


            Se continuarmos encorajando este modelo de convivência, que o BBB reflete perfeitamente, não obteremos resultados com as campanhas pela cultura da paz, pelo desarmamento, pelo despertar da consciência ecológica, pelo fim do trabalho infantil, etc. Estamos tentando fechar a porta depois que o ladrão já entrou.


            Existem muitos modos de olhar para esse laboratório social que é o BBB. Para além da mirada superficial, quem sabe permitiremos que este excesso de realidade gere em nós uma grande inquietação, ilumine as nossas consciências, antes que sejamos, todos, mandados para o paredão. 


 


Sandra B.


 


imagem: "Realidad" - Disponível em www.margencero.com


 

19 comentários:

Gilberto Uryn disse...

Sandrinha, já conversamos muito sobre isso, eu concordo com você. Mal ou bem, vivemos nossas vidas em outros patamares, outros valores. A bola agora está com a geração dos vinte - e essa geração não tem os nossos parâmetros prá poderem perceber o que lhes está sendo enfiado goela abaixo.
Somos todos responsáveis, concordo. Mas não temos o controle do painel; o que podemos fazer é apenas alertar que o painel acende luzes fortes demais, que ofuscam a percepção da realidade. Que Vida não é isso.
E gritar bem alto, sem descanço, prá ver se nos fazemos ouvir.

Beijos

Luciene Costa de Castro disse...

Essa colonização do imaginário faz com que essa lógica permeie cada vez mais nossas relações sociais. Tudo bem que eu tenha mesmo uma certa predisposição para ficar para baixo, com as menores coisas (ou assim elas parecem ser), mas isso me deixa ainda pior.

Vencedores e perdedores, superficialidade, rapidez exagerada, ausência de reflexão. Isso tudo me dá um cansaço que eu juro que se torna físico, dependendo do dia. Não que eu ache que tudo deva ser pensado minuciosamente, ou pesado, ou excluir a diversão. Mas, não sei, ando com um mal-estar danado em relação às pessoas e a mim mesma, ultimamente. Não é um sentimento confortável, porque traz uma solidão grande junto.

Sei não... Acho que vou me confinar no BBB7.

Eliana Mora disse...

sabe, eu não vejo mais não....no início, não era muito prduzido, era sei lá mais humano
não sou fã de 'reality shows' - como dizes, tem excesso de NÃO REALITY
beijo

Nelson :-P disse...

Fajuto, da seleção dos candidatos até a manipulação das imagens e das votações. Tudo fajuto!

Dehynha AP disse...

Excelente esplanação, Sandra. E isso é papo pra mais de metro! rs
Mas o BBB pra mim, não é exemplo de realidade. É arte! Sério! Arte! Alguém criou, planejou e escolheu os atores. No BBB tudo é armação... ou... armação. São obrigados a fazer aquelas coisas o tempo todo. Há psicólogos de plantão e o Big Boss que fica controlando as marionetes, principalmente qdo cai o IBOPE. Caiu o IBOPE? Todos vao pentear macacos de hora em hora! Credo!

Estamos sempre, na vida, na real, tentando não ir pro paredão. Minha vida, a sua, e de qq outra pessoa, está sempre sendo "vigiada" por esse ou aquele que adoraria nos ver penteando macacos. Mas não estamos sozinhos... tem sempre um anjo nos ajudando. Ou vários... E temos torcida. Gente que torce por nós e que até faz com que saiamos sãos do paredão. E isso vale um milhão?

Gilberto Uryn disse...

Gostei da sua abordagem, Dehya, bem realista e otimista, parabéns. Também acho que você tem razão.
O que prova que cada movimento na vida pode ser visto por vários ângulos...

Beijão

Sandra Baldessin disse...

Queridos amigos, obrigada pela leitura e comentários.
besitos

Jorge Junior disse...

Linda Sandra, maravilhoso texto!! sabe abençoada seja vc e todos os eus por ser mais uma ( das poucas) vozes dissonantes neste planeta. Beijos Mil!!
PS: Vou linkar esse texto ok?

Silvia Nay disse...

Muito bom Sandra! Vim pelo link do Jorge.
Acho que inclusive isso deveria ser publicado na mídia para que as pessoas pensem mais a fundo o que representa um programa desse.
O pior é que passa mesmo ser um modelo de fama e dinheiro fácil sem nenhum tipo de ética com relação ao outro.
Pobre juventude que tem como objetivo na vida isso aí...

Abraços

Jose Liborio disse...

Parabéns, Sandra! Sua análise do "fenômeno" BBB foi fantástica e subscrevo-a integralmente. Aliás, dia desses na TV Escola, passou um documentário fantástico, produzido pela BBC sobre os efeitos devastadores de programas de auditório e BBBs da vida sobre o indivíduo.
E vai também a pouca seletividade e preocupação dos que assitem televisão com a qualidade da programação. Foi fantástico a ação do Ministério Público quanto ao programa do João Kleber com suas piadas homofóbicas.
Não gosto de censura, mas até hoje não entendo porque não há um "Conar" para o jornalismo e para a TV, com uma prestação clara de contas para a sociedade.
Em nome da "liberdade de expressão e criação" esquece-se do indivíduo e da sociedade onde ele está inserido.. Que pena!
Beijos!

Adair CJ. disse...

Há muito, Sandra, todas as campanhas estão fadadas ao fracasso.
Há muito abrimos mão, como civilização, de valores que não sejam os do "mercado".
O paredão já chegou, há muito.

beijos

XXXX YYYY disse...

estas cheia de razão - um dia virá, em que quem tem a capacidade criativa de produzir globalmente esses eventos, se recuse a faze-lo!
nesse dia, os gestores das estacoes de TV, ficam a falar sozinhos!
abraço carlos peres feio
http://podiamsermais.weblog.com.pt

Sandra Baldessin disse...

agradeço a todos a leitura e os comentários.
Obrigada por linkar, jorge. besitos.

Marinho (neoCrumb) disse...

Esta "realidade" simplesmente invade nosso cotidiano. Muitas vezes vejo pais passando aos filhos valores outros que não esses (competir, dominar, vencer a qualquer custo, egolatrias, culto ao umbigo, etc). Porém, existe o além muro (ou condomínio). Existe o clube, a escola, a igreja, todos inseridos no processo de homogeneização tendo a mediocridade como régua.
Muitos pensadores já nos diziam que o perigo da Ideologia está no que ela oculta, não no que expõe. Ela expõe que existe apenas um jeito de pensar e enxergar a História; oculta que, à exemplo do ciclismo ou natação, o homem também pode aprender maneiras diversas de pensar. Expõe que temos narizes diferentes, cores de pele diferentes -portanto, somos diferentes uns dos outros; oculta que a mesma afirmação diz que todos temos narizes e pele -portanto, somos iguais.
Diria que a maior indagação que BBB suscita é se ele determina ou é determinado pelo comportamento da sociedade. Ou, dialeticamente, se o refletido refletor reflete o refletor refletido.
Que fazer? Eu não sei. Compartilho o espanto daqueles que acreditavam na Era de Aquarius e não conseguem detectar qual foi exatamente o ponto em que se deu a ruptura entre acreditar no sonho e a degenerescência das gerações seguintes (yuppies, meninos de rua, traficantes, etc).

Sandra Baldessin disse...

"Compartilho o espanto daqueles que acreditavam na Era de Aquarius e não conseguem detectar qual foi exatamente o ponto em que se deu a ruptura entre acreditar no sonho e a degenerescência das gerações seguintes (yuppies, meninos de rua, traficantes, etc)."

Faço minhas suas palavras.
Obrigada por sua leitura.

Marcello Freitas disse...

Minha querida!
Vc está certissima!
Abcs

Sandra Baldessin disse...

Obrigada, Marcello, você está sumido, hem?
besito

Mascarenhas Castro disse...

Belo texto, típico de nossa geração, que viu as utopias morrerem...

Sandra Baldessin disse...

sim, as utopias e também muitos "ismos", para o melhor e para o pior.
Obrigada pela leitura e comentário.