sábado, 5 de novembro de 2005

"Aquilo que ainda pode ser salvo"

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A análise dos vínculos entre Literatura e Sociedade, ou a atribuição de uma função social à Literatura é tema de um sem número de pesquisas. Entre aqueles que defendem que toda obra literária deve obrigatoriamente cumprir um papel social, e a outra corrente de pensamento que entende a obra literária como algo absoluto, que existe em si e por si, não tendo compromisso algum além da estética (estesia), inclino-me a engrossar as fileiras do segundo grupo, sem fanatismos.
Uso a expressão ‘sem fanatismos’, pois, é óbvio que há uma extensa zona de intersecção entre literatura e sociedade; a obra literária (a obra de arte, de modo geral) sofre influência do meio social e o influencia, sendo esse um processo de intervenção dinâmico.
Sempre que tenho oportunidade de participar de seminários que discutem o tema, procuro defender a idéia que o saber gerado pela literatura contribui para a sobrevivência de uma identidade social que se constrói como narrativa; esse saber tece imagens, ora inusitadas, ora familiares, à procura de manifestar o real, que se torna tão mais intenso quanto maior for o estranhamento produzido pelo fato literário.
Não que a obra literária tenha essa responsabilidade ou qualquer outra obrigação (como querem alguns), mas, porque está no seu ‘caráter humano’ já que é produzida por homens.
Quando falo em manifestar o real, refiro-me a determinados ângulos da realidade captados pelo olhar do autor, filtrados pelo seu próprio ideário cultural, sua percepção sensorial e afetiva, e, finalmente, transformados por ele em escritura. Aqui, é preciso cuidado para não ser reducionista: a obra literária não é um mero produto da incorporação de realidades apreendidas ou inventadas.
Através do contato com a escritura de Marcuse tenho compreendido melhor a zona fronteiriça e, portanto, conflitante, entre Literatura e Sociedade. Segundo ele: “A verdade da Arte reside no poder de romper o monopólio da realidade estabelecida (isto é, daqueles que a estabeleceram) para definir aquilo que é real”. As grandes obras da pobremente denominada “literatura de engajamento social”, como “Vidas Secas”, por exemplo, são grandes porque exerceram plenamente esse poder, e não porque cumpriram uma suposta função.
Transpondo o pensamento de Marcuse para esse território, compreendo que a obra de arte literária não se compromete com a questão social, mas, a sua energia estésica pode sim, como quer Marcuse “se tornar uma denúncia [e também] a celebração daquilo que resiste à injustiça e ao terror, e daquilo que pode ainda ser salvo”.


imagem: capa do livro de Marcuse: "Eros and Civilization"

6 comentários:

chelsea hotel disse...

«...o saber gerado pela literatura contribui para a sobrevivência de uma identidade social (...). Não que a obra literária tenha essa responsabilidade ou qualquer outra obrigação (como querem alguns), mas, porque está no seu ‘caráter humano’»

Completamente de acordo consigo, Sandra. Ou, como diz Enrique Vila-Matas:

"A literatura, por muito que nos apaixone negá-la, permite resgatar do esquecimento tudo isso sobre o qual o olhar contemporâneo, cada dia mais imoral, pretende deslizar com a mais absoluta indiferença."

Este é um tema que me apaixona, como a si.

Beijinho
Sol

Sandra Baldessin disse...

Oi SOl, é ótimo vê-la por aqui... Sim, esse tema me apaixona, temos que trocar mais idéias sobre isso.
beso, querida.

Eliana Mora disse...

gostei
gostei do exemplo de "Vidas Secas" - - uma referência, mesmo
E [ainda] concordo com as duas.

beijo

Sandra Baldessin disse...

obrigada, El,´por sua leitura.
beso

Adair CJ. disse...

penso assim também, Sandra.
a obra de arte é uma criadora da realidade e não há maior função social que esta.

bjo

Sandra Baldessin disse...

com certeza, poeta.
besito