domingo, 29 de maio de 2005

Anne Greene*


Eu estou morta. Eles me enforcaram, ainda posso sentir uma dor terrível no pescoço. Mas como isso seria possível se eu estou morta? Deve ser a tal da alma, que, afinal, existe mesmo e  o pior é que dói, a alma sente dor física, quem diria!


Morta, não há dúvida de que estou. Eu sei que saí da cela e caminhei uns três quilômetros debaixo de uma chuva gelada até o pátio do Castelo, posso me ver subindo na escada e gritando a minha inocência, o que, de fato, não adiantou nada, porque nem eu mesma sei se sou ou não culpada. Mas é quase certo que não sou, ou não era, já que estou definitivamente morta.


Estou morta e este aqui não é o inferno, então talvez eu não seja mesmo culpada; pelo menos não se parece com o inferno descrito pelos malditos Puritanos e está cheirando a asas de galinha fritas, o que me lembra que essa minha alma, além de dor, também tem fome.


O carrasco passou a corda no meu pescoço, isso é certo. E me empurrou da escada, aproveitando pra me apalpar a bunda, que nunca foi nenhum santo, esse filho de Miss B. E cantavam salmos, enquanto isso. Enforcada. Decerto que a brincadeira com o neto de Sir Thomas Reade não valia tanto, não valia minha vida e minha juventude, meu corpo bem fornido de carnes e o carmim das minhas bochechas. 


Quem imaginaria que o esfrega-esfrega com o neto do patrão acabaria tão mal? Castigo, castigo, quem mandou não dar a xoxota pra um aldeão qualquer, pra um homem da minha classe, para o ferreiro que vivia encompridando o olhar em cima da minha carnação macia? E nem me ouviram quando eu disse que nem sabia que dessa forma é que se faziam bebês. Se é que aquele “naco de carne” que me escapou pelas pernas, poderia ser chamado de bebê. 


E essa agora! Olha que parece a voz do meu irmão... a voz de Miss Rosamund...Parece dia de mercado, será que tanta gente assim acompanharia meu enterro? Porque, morta, estou. Olha que eu dava um braço pra poder contar para o Doutor Petty que a gente tem alma, sim, eles lá é que são incompetentes pra encontrar a talzinha! Ora, ora, que agora ela sabia muito mais do que aquele bando de profetas-do-mijo


Mas, que coisa... porque é que Deus põe “espada na mão de cego”? Pois se eu estivesse viva ia fazer um bem pra ciência e pros padres, contava pra eles que alma existe e é um tipo de corpo que dói, cheira, escuta e até fome sente. Mas também dizia que pelo visto é uma alminha só, não essa colméia de almas que eu escutei o Doutor Willis falando pro patrãozinho. 


Seja céu, seja inferno, o lugar aqui é bem estreito e... ai meu Deus, que será isso? Mas, olha se não é o balofo do tripeiro me pisando o peito, será que ele morreu também? Valei-me Deus, que o Dr. Petty e o Dr. Willis também morreram e não vai caber toda essa gente aqui! 


O Dr. Willis tá me esfregando o peito... Deve de ser o céu, o Dr. Willis e o Dr. Petty são tementes a Deus. Então, a minha almazinha está salva! Mas, porque é que eles vão me sangrar e esfregar terebintina no meu pescoço? Eu já morri mesmo. Apesar que, defunto é tudo gelado e de repente estou sentindo o calor do corpo dessa fulana que jogaram em cima de mim. 


Viva, viva, estou viva! O Dr. Petty me ressuscitou, o danado! Junto com o Dr. Willis. E não vão deixar os malditos Puritanos me enforcarem de novo, já se viu? Pois eu sou inocente, tão inocente que até a Providência Divina resolveu dar um sinal. E depois, o bebê nasceu morto, afinal, serviu pra alguma coisa a ciência! 


E se duvidar, ainda hei de enricar, já que toda gente quer me ver no caixão e agora eu vou cobrar ingresso: quer ver como eu ressuscitei? Paga. Porque os jornais estão falando só disso: “Anne voltou para casa, carregando consigo o caixão que ocupara, como um troféu de seu extraordinário destino.” 


Olha, é o meu extraordinário destino e virou até livro que o Dr. Petty mandou publicar e distribuir por toda Londres. Tem trinta e sete poemas falando da minha ressurreição! “Thus’tis more easy to recall the Dead. / Than to restore a once-lost Maidenhead.”** 


E ainda me caso com o ferreiro, apesar que depois de toda essa história, a minha xoxota podia aspirar companhia mais nobre...


 


 


Sandra R. S. Baldessin


 


 


*Anne Greene, enforcada pelo assassinato do seu bebê natimorto, foi ressuscitada pelos médicos Thomas Willis e Willian Petty, em Londres, no ano de 1650.


** "Assim se vê que é mais fácil ressuscitar os mortos do que restaurar a virgindade perdida."


Imagem disponível em: www.universohq.com/.../ 2003/n16102003_04.cfm


                                   



 

10 comentários:

XXXX YYYY disse...

Excelente, Sandra!
Uma escrita que prende, que mexe com a gente.
Excelente!

Beijos

Sandra Baldessin disse...

obrigada KK, fico feliz que tenha gostado.
besito

XXXX YYYY disse...

Que viagem assustadora e, ao mesmo tempo, deliciosa.
E como flui o texto, seu texto, como se saisse dos meios das pernas da Anne.
Você é phodda.

Sandra Baldessin disse...

ah, já estava sentindo sua falta nos meus posts...
hum, não sei porque, eu gosto desse conto, talvez pela relação com a história, sei lá...
besito

chelsea hotel disse...

É, como diz o comentário anterior, uma viagem assustadora. E surpreendente. Óptimo!
Beijo

Sandra Baldessin disse...

obrigada, Sol, fico feliz com sua visita.
besito

XXXX YYYY disse...

Muito bom, Sandra.
Adorei o estilo, o ritmo, o vigor do texto.
Parabéns.

Sandra Baldessin disse...

oi ledio, feliz com seu comentário, vc anda sumido.
besito

Eliana Mora disse...

Oi, Sandra - gostei. A coisa de sentir o que "já não há" - então é bem antiga...

[diferente na foto nova...]
beso

Sandra Baldessin disse...

ah, que bom que vc gostou, eu estou brincando com essas idéias, agora estou escrevendo como se fosse Maria Antonieta...rsrs (eu aviso se for pirar...rsrs)
a foto nova foi meu filho que fez, ficou legal, não?